Autoria Quantum Bird, editor do site de geopolítica Comunidad Saker Latinoamérica.
De acordo com S. Glazyev, em seu ensaio seminal “Sanções e Soberania”, didaticamente discutido nas excelentes entrevistas aqui e aqui, a oportunidade do século consistiria na possibilidade de liberar-se definitivamente do assédio imperialista do Ocidente Coletivo através da construção de uma ordem mundial multipolar baseada no exercício da soberania e em arranjos multilaterais ganha-ganha.
A jornada rumo à multipolaridade é complexa e impõe algumas tarefas árduas, como a formulação de arquitetura e instrumentos financeiros adequados ao crescimento econômico e à redistribuição de renda, idealmente imunes ao do dólar – principal arma no arsenal do Hegemon. Impõe também a necessidade de formular novos fóruns e entidades multilaterais, sem os vícios daquelas existentes, que foram largamente desenhadas e impostas pelo Hegemon, em benefício próprio, após a Segunda Grande Guerra.
Adicionalmente, a operação no ambiente da multipolaridade pressupõe ainda que cada país busque a capacidade de articular seus próprios interesses de uma perspectiva soberana, mas sem ignorar ou ofender os interesses dos países parceiros. E isto inclui, obviamente, o respeito absoluto à política doméstica alheia.
Dito isto, relembramos que desde a inauguração do governo atual brasileiro temos apontado como o Brasil tem seguido uma política externa errática, que oscila entre uma suposta ambiguidade estratégica obsoleta e uma representação, ao estilo câmara de eco, de certos interesses do ocidente coletivo. O nosso foco no governo atual se justifica porque foi sob os primeiros mandatos de Lula, no começo da década de 2000, que o Brasil se tornou um membro fundador dos BRICS e um dos propulsores do G20. E é exatamente este ponto que motiva nossa primeira pergunta.
Existe, ou já existiu, interesse sincero do Brasil nos BRICS e na multipolaridade?
A dúvida tem fundamento, pois, a despeito de toda retórica e propaganda empolgada sobre os BRICS e a multipolaridade, que o mandatário brasileiro exerce ao redor do mundo, para audiência internacional, as atitudes brasileiras vis a vis seus parceiros do Sul Global parecem sugerir que não. Simplesmente, o engajamento brasileiro parece insincero, e seguramente é inconsequente.
O histórico de evidências tornou-se exuberante demais para ignorar. A lista é longa, mas alguns episódios se destacam:
Primeiro tivemos o posicionamento bizarro das autoridades brasileiras em relação à Operação Militar Especial Russa na Ucrânia, na qual Lula emulou Montezuma. Em seguida, outra bizarrice, decorada com tons de covardia, sobre o genocídio em curso dos palestinos da Faixa de Gaza por Israel. E mais recentemente, temos acompanhado a instância deplorável, e irresponsável, do governo brasileiro sobre as eleições na Venezuela, em uma intromissão gráfica na política doméstica daquele país, que só tem servido para legitimar a posição imperialista dos EUA e seus vassalos europeus e debilitar ulteriormente a estatura da diplomacia brasileira. Aliás, ainda sobre a crise em curso de resolução na Venezuela, acabamos de saber que existem discussões nos círculos do governo, lideradas pelo assessor para assuntos internacionais da presidência, Celso Amorim, para condicionar o reconhecimento do governo venezuelano pelo Brasil à realização de novas eleições naquele país.
Independentemente da formalização ou não dessa proposta, o esforço para evitar a resolução doméstica da crise e o desejo brasileiro de promover uma mudança de regime na Venezuela, em congruência com os interesses dos EUA, estão agora completamente expostos. Ademais, ao se preocupar com índices de popularidade, corroborando indiretamente as narrativas da mídia hegemônica sobre a Venezuela, Lula perde a oportunidade de elevar a sua estatura e educar politicamente a população brasileira, além de alienar ainda mais a militância remanescente de esquerda.
Neste ponto, convém colocar uma pergunta adicional. Será que a liderança brasileira na América Latina não passa de um mito fabricado nos corredores do Itamaraty?
Em outra notícia, temos a indicação de um embaixador brasileiro (diplomata de primeira classe) para Taipé, em Taiwan, e a omissão da vinculação daquela missão diplomática à embaixada brasileira em Tóquio. As nuances do desenvolvimento não passaram despercebidas, e podem ser interpretadas como a elevação do status da missão diplomática ao mesmo nível daquela em Pequim, o que indicaria a percepção de Taiwan, pelas autoridades brasileiras, como uma entidade política independente. Ou seja, um potencial desgaste diplomático com um parceiro dos BRICS, que por acaso é a maior potência econômica do mundo e um dos maiores parceiros comerciais brasileiros. Além disso, se confirmado, seria um novo caso de emulação pelo governo brasileiro de outra característica da política externa estadunidense.
Considerando tudo exposto anteriormente, seria prematuro concluir que o Brasil está lentamente abdicando de seu engajamento nos BRICS e na multipolaridade, enquanto reafirma seu status quo colonial no campo do ocidente coletivo?
Fiz essa pergunta a um caríssimo amigo, amplamente conhecido e lido globalmente. Sua resposta:
“Prepare-se para KAMALULA!”
Brasil vs Venezuela: Uma questão de lealdade
De todos os aspectos que definem a estatura ética e moral de um político e seu legado, a lealdade é talvez o mais decisivo porque, em geral, é a capacidade de exercer a lealdade que torna um político confiável e útil nos momentos mais difíceis. A lealdade se manifesta em vários níveis: ao eleitorado, aos parceiros de estrada e aos companheiros do campo ideológico, ou seja, aqueles que não barganham apoio para extrair vantagens em momentos de dificuldade.
Semana passada, o presidente Lula disse que o Brasil não reconhecera a vitória de Nicolás Maduro, e então indicou a necessidade de novas eleições na Venezuela. A decisão veio antes da conclusão dos processos de julgamento de apelações em andamento nos tribunais venezuelanos. Nossa leitura geopolítica da posição do Brasil já foi expressa. Hoje gostaríamos de comentar esse desenvolvimento de uma perspectiva ligeiramente diferente.
Não há registros de ataques a Lula ou Dilma Rousseff por Hugo Chávez ou Nicolás Maduro. Muito pelo contrário. Chávez e Maduro sempre estiveram na vanguarda da defesa da soberania e da democracia na América Latina. Na verdade, Maduro foi o defensor mais vocal de Dilma Rousseff na América do Sul e denunciou implacavelmente o golpe de estado branco que levou ao seu impeachment como presidente do Brasil em 2016. Maduro também sempre denunciou a prisão ilegal de Lula pela Lava-Jato.
Basicamente, não temos registro de Maduro pedindo a Lula, ou Dilma, provas de sua inocência antes de apoiá-los nos inúmeros casos de acusações fraudulentas, lawfare e sabotagem internacional que sempre tiveram como alvo o Brasil sob as administrações do Partido dos Trabalhadores. Nem Chávez ou Maduro intervieram na política interna brasileira para viabilizar os interesses do imperialismo na região.
Acreditamos que todo ativista genuíno de esquerda – tenha votado em Lula ou não – assim como todo brasileiro decente deveria se envergonhar da deslealdade gráfica demonstrada pelo presidente brasileiro. Tememos que, para eles, as palavras de Lula não importem mais.
Será que o tipo de “liderança na região” a que aspira a classe dominante brasileira – Lula e Celso Amorim incluídos – é análogo ao que o capitão do mato exerceu nos canaviais?
Publicado em Comunidad Saker Latinoamérica.