Autoria Rafael Bautista Segales, filósofo boliviano, teórico político, epistemólogo e cientista geopolítico.
O alinhamento de certos governos com o slogan da “fraude”, para deslegitimar as últimas eleições na Venezuela, está fraturando gravemente a região. As consequências desta nova formação de um bloco relacionado com a geopolítica do dólar apenas esboçam um cenário análogo ao que deu origem ao processo de balcanização da ex-Iugoslávia que, até hoje, torna impossível a coexistência entre aqueles que outrora convergiram em um único Estado federal.
Foram razões geopolíticas que impulsionaram uma guerra que durou mais de uma década. Lá também, trazer a democracia made in USA significou apenas desencadear um caos infinito. Washington e a OTAN propuseram pôr fim a ex-URSS, cercando-a em suas fronteiras próximas; essa é também a razão pela qual ambos pressionaram pela guerra na Ucrânia, sacrificando uma nação inteira para produzir vantagens estratégicas (sobre a Federação Russa) que agora lhes parecem um fracasso total, mas para a Ucrânia isso significou tão somente perdas incalculáveis.
Da mesma forma, a resposta imediata de Washington à expansão chinesa e russa na nossa região já foi expressa abertamente pela chefe do Comando Sul, Laura Richardson. Por isso já dissemos que se trata, na realidade, de uma ameaça que vinha acompanhada de uma série de medidas “diplomáticas” para disciplinar os governos regionais, especialmente os chamados “de esquerda”.
Este contexto deveria fornecer ao presidente Lula (como expressão do BRICS+ na América Latina) os elementos decisivos para liderar um desagregamento gradual da geoeconomia do dólar em âmbito regional, mas o seu próprio alinhamento com a mitologia “democrática” gringa, não só faz com que Lula perca essa possibilidade, mas contribui para ele desestabilizar a região, sair do cenário adequado e permanecer enclausurado, fora da economia do século XXI, ou seja, desconectando-se do Pacífico e da Ásia.
Não há necessidade de nos referirmos à abordagem oportunista do governo chileno ao travestismo de esquerda. Mas no que se refere ao alinhamento de outros países, vale destacar que o poder do dólar sequestrou a nossa região e que, em maior ou menor medida, atua sobre a nossa própria soberania. Na América do Sul conseguiu constituir um bloco maioritário, deixando a Bolívia e a Venezuela penduradas num isolamento sinalizado pelos maniqueístas (que alimenta a renascida russofobia nos nossos países, expressa no anticomunismo e na aporofobia). Desta forma, o objetivo seria legitimar uma escalada no conflito regional, tensionado as próprias relações diplomáticas.
Equador, Peru e Argentina já são os laboratórios onde o Comando Sul opera uma série de táticas e estratégias de contrainsurgência, não esqueçamos que o Equador já cedeu a sua soberania militar aos EUA em acordos (como o acordo “status das forças” de 2023), assim como o fez a vice-presidente de Javier Milei, Victoria Villarruel, com o slogan de “modernizar e fortalecer as Forças Armadas da Argentina ”; e o governo golpista de Boluarte no Peru, com anuência do Congresso, ao possibilitar a entrada de mais de mil instrutores militares gringos.
Portanto, a “moderação” da Colômbia e, sobretudo, do Brasil resulta na perda de sentido no presente dramático que enfrentamos como região. O arco sul-americano joga o seu destino enquanto se calibram opções particularistas que já não fazem sentido no desenvolvimento da nova geopolítica multipolar. Hoje, mais do que nunca, é uma verdade inquestionável que a nossa libertação terá de ser continental ou não será.
A história da fraude, que foi armada na Bolívia para legitimar – ao estilo “revolução colorida” – o golpe de Estado de 2019, teve e tem como propósito, entre outras coisas, plantar a dúvida que foi semeada na opinião pública para desgastar e desacreditar todos os projetos populares.
É por isso que o aparecimento de Milei expressa uma fase decisiva da aposta fascista no nosso continente; porque não é uma loucura irracional, mas sim muito bem calculada pelos planos regionais de balcanização. Algo que também foi implementado no próprio processo da nossa independência, no século XIX.
É por isso que a famosa “Doutrina Monroe” foi, na realidade, a aposta da elite política americana para balcanizar um projeto conjunto que nos une numa capacidade unificadora e dissuasória contra as potências imperiais. O projeto da “Grande Colômbia” foi isso, e o ideal bolivariano é a referência atual que reavive a necessidade da união continental. Entretanto, mais ao sul, o governo argentino parece inclinado a configurar um cenário equivalente à guerra da Tríplice Aliança. Então, como pode ser visto, tanto a Venezuela como a Bolívia encontram-se geopoliticamente rodeadas pelas potenciais ameaças beligerantes das suas próprias nações vizinhas.
Nesse sentido, afirmamos que o golpe no Peru foi, na realidade, um golpe ameaçador para a Bolívia, constituindo o preâmbulo de uma guerra pelo lítio; bem como o não reconhecimento das eleições na Venezuela, acabariam por ser um golpe regional para o Estado venezuelano. E é isso que desencadearia um conflito exponencial já demarcado pela fratura que está ocorrendo no nível diplomático.
O fato de Lula não alertar para os riscos que tudo isto indica, não só mostra a ausência de perspectiva crítica ou de liderança continental, mas, o mais preocupante, a cegueira geopolítica estratégica.
Bem, estes riscos nada mais fazem do que minar a possibilidade de uma entrada regional soberana no mundo multipolar nascente e deixar-nos à mercê de uma ordem unipolar que só pode sobreviver se nos destruir sistematicamente.
O dólar é a economia e o modo de vida que representa a guerra por todos os meios. Provocar o caos infinito em nossa região é o que Washington propõe como único meio de resistir à expansão do BRICS+.
Estão perdendo o mundo, tendo já perdido a Ucrânia e mal conseguindo manter uma credibilidade moribunda em seu compromisso com o governo sionista. Resta-lhes o seu chamado “quintal” e a cumplicidade submissa das nossas oligarquias; e, embora se encontrem num possível cenário de guerra civil onde Democratas e Republicanos são apenas a coorte de um establishment quebrado em sua própria confiança imperial, a servidão moderada da direita regional, que brinca com fogo e acreditam inconscientemente que isso não os afetará.
Todos os governos, que configuram agora um novo “Grupo Lima” sujeito às ordens de Washington, não percebem que, ao destruir o sistema eleitoral venezuelano (há muito endossado até pelo Carter Center), estão apenas semeando as sementes da destruição dos seus próprios países e instituições.
Esse é o preço das notícias falsas: elas fazem com que você não possa acreditar em nada. Se podem ignorar qualquer governo, por qualquer motivo e, desta forma, alimentar conflitos internos, o que os leva a pensar que isso não deva ser replicado em seus próprios Estados?
Isso faz parte do plano oculto da agenda imperial de caos infinito: eles não estão interessados em manter ninguém, mas em desencadear um caos exponencial que nos condene ao inferno da guerra e, desta forma, garanta-lhes uma desapropriação sem precedentes de todas as nossas forças estratégicas e recursos para alavancar o seu declínio.
O poder financeiro, que é autoconsciência na fenomenologia do espírito do capital, chegou a um ponto sem volta, pois enfrenta os limites reais do mundo e da vida, mas não interessa mais, porque a guerra é o seu paradigma, o qual supostamente oferece um campo infinito de oportunidades.
Essa aposta constitui o imperialismo e é isso que o leva a destruir qualquer possibilidade de um mundo partilhado, também é a idiossincrasia renascida como “libertária” de uma vontade de domínio absoluto. Em meio ao colapso imperial e ao desenho geopolítico unipolar, a expansão chinesa é vista pelo Império em declínio como uma questão existencial.
É por isso que já não está empenhado em competir (que é o que supostamente promove como um “mercado livre”), mas sim em destruir. O que, mais uma vez, testemunhamos na Venezuela, com as guarimbas agitando as ruas, mostra uma repetida fotografia do conflito social como a única razão que o “mundo livre” tem para nos intimidar.
É o Ocidente que se expressou pela boca de Netanyahu diante do Congresso americano e todos aplaudiram aquela arrogância ontológica de quem cospe as suas bobagens para o céu. E não é apenas Corina Machado, mas todos os prelados da Inquisição democrática feita pelos EUA, que ordenam a verificação do voto.
O Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela tem protocolos próprios e responde sobretudo ao Estado venezuelano e não ao capricho de quem, pela experiência que vivemos em 2019, mesmo quando lhes é demonstrada a ausência de fraude, nunca dará ascender a outra certeza que não a sua. Até hoje nunca conseguiram demonstrar a famosa fraude que a direita boliviana inventou sob a escrita gringa.
Agora que a oposição venezuelana afirma ter vencido com 73% dos votos, é ela que está em sérios apuros, porque provar isso significaria algo como inflamar os próprios cadernos eleitorais em 100%. Os 51% de Maduro permanecem à margem da votação histórica do PSUV e isso já refuta qualquer tipo de manipulação do processo eleitoral.
A isto devemos acrescentar o seguinte: a oposição tem como “fonte” da acusação de fraude a empresa americana Edison Research, empresa que trabalhou na geração de percepções da opinião pública na Ucrânia, antes do Euromaidan, a qual culminou na demissão de Presidente Yanukovich.
Enquanto o instituto de pesquisas Hinterlaces deu aproximadamente 54% a favor de Nicolás Maduro e 42% ao opositor Gonzáles Urrutia, meios de comunicação como o Washington Post, o Wall Street Journal ou a Reuters publicaram apenas a versão da Edison Research, que deu 65% a Gonzáles Urrutia e 31% para Nicolás Maduro.
Os clientes desta empresa americana são meios de propaganda geridos pela própria CIA através da US Agency for Global Media (entre eles, Voice of America, Radio Free Europe, Middle East Broadcasting Network etc.), o que reflete uma retórica premeditada e para piorar, não é nova, mas sempre serve para disseminar a política do ódio nas sociedades urbanas permeadas por preconceitos imperiais.
É por isso que é embaraçoso ouvir analistas geopolíticos da Espanha, por exemplo, que denunciam a submissão europeia a Washington, mas são incapazes de pelo menos relacionar isso com o que sofre a América Latina. A sua própria colonização naturalizada desses preconceitos pode fazê-los exigir a perda dos valores democráticos dentro das suas fronteiras ou mostrar solidariedade com Gaza. Entretanto, da mesma forma faz com que ignorem os direitos da periferia e pensem que, se propõe uma verdadeira democratização por dentro e por fora, pela sua perspectiva eurocêntrica, são apenas expressões da barbárie da selva, dito por Borrel.
Quando os europeus pensam numa revolução, em que pensam? Quando chamam o governo bolivariano de ditadura e regime, o que imaginam? Mesmo quando alguns denunciam as falácias que a OTAN e Washington espalham contra Putin ou a favor de Israel contra a Palestina, denunciam realmente a sua hipocrisia. O critério que nunca aceitam é o básico: a referência dura da equação democrática não é estabelecida pelos incluídos, mas pelos excluídos. Agora, se os europeus querem nos dar lições sobre democracia (e toda a sua trupe de filiais na América Latina), parece pura nostalgia, além de algo que nunca conheceram realmente.
O que eles não compreendem e não querem compreender é que, graças à periferia, desfrutaram daquilo que agora exigem, mas mesmo assim, recusam-se a admitir que reivindicamos qualitativamente aquilo que eles começam a ansiar redutivamente. O declínio do Ocidente e do mundo moderno não poderia ser maior.
E se falamos de revolução, revolução é o que começamos a provar nas nossas terras. Porque a verdadeira revolução é aquela que revive os antepassados. Eles voltam para sair às ruas, para colher as sementes que sua confiança no povo semeou. Que Bolívar e Chávez surjam então, como um vento na savana, o amanhecer de todo um povo que finalmente encontrou seu verdadeiro destino.
Agora é a hora, proclamam! Porque não nos libertamos para sermos livres, mas para nos redimirmos, redimir os nossos mortos. Porque os mortos não estão mortos se nós, os vivos, fizermos um ninho com a sua causa nas nossas vidas. Agora é a nossa vez!
Eles nos contam. Então não desmaie, não desista, porque você não está sozinho. Porque quando os mortos sonham com os vivos, é aí que a revolução desperta.
Publicado em Rebelión.