Autoria Pepe Escobar, jornalista veterano independente brasileiro, autor e analista especialista em geopolítica. Colaborou com dezenas de veículos de imprensa nos EUA, Europa e Ásia.
A 14ª Conferência do Oriente Médio no Valdai Club, em Moscou, foi atingida por uma bomba geopolítica destruidora de bunkers bem no meio dos procedimentos: o anúncio do próprio presidente dos EUA, Donald Trump, sobre algum tipo de futuro Trump Gaza Riviera Resort and Casino na Palestina.
Mesmo antes que a indignação internacional começasse a se espalhar, do BRICS front à ASEAN e ao mundo árabe (que o vê como Nakba 2.0), chegando até mesmo à Arábia Saudita, favorável a Trump, e aos principais aliados dos EUA na Europa, a perplexidade se instalou no Valdai entre a maioria dos acadêmicos e estudiosos.
Duas exceções gritantes foram o professor da Universidade de Teerã Mohammad Marandi e o ex-diplomata britânico Alastair Crooke – analistas sempre sutis sobre a Ásia Ocidental. Ambos há muito argumentam que, à medida que o Império Americano é forçado a recuar, ele se tornará muito mais implacável e assumirá riscos maiores.
Marandi qualifica Trump como “um presente” para o declínio global americano. Crooke, por sua vez, se pergunta se o primeiro-ministro de extrema direita de Israel, Benjamin Netanyahu, realmente prendeu Trump em um atoleiro – quando pode ser o contrário. Trump agora parece ter Netanyahu – que ele basicamente despreza – exatamente onde ele o quer: devendo favores.
Trump fez muitas promessas bombásticas, que servem para Netanyahu vender como grande sucesso para os belicistas de Tel Aviv que compõem seu governo. Então sua coalizão vai se manter – por enquanto. Entretanto, em troca, Israel ainda terá que seguir os próximos passos do desprezado projeto de cessar-fogo. E isso levaria, em teoria, ao fim da guerra. Netanyahu quer uma Guerra Infinita, com expansão e anexação ilimitadas de Eretz de Israel. Isso não é um acordo fechado – nem de longe.
Do jeito que está, pelo valor nominal, de uma só vez, Trump normalizou o genocídio, a limpeza étnica e a redução da tragédia de Gaza num acordo imobiliário de mau gosto em um “local fenomenal”. O efeito acumulativo de “os EUA tomarão conta da Faixa de Gaza”, ” nós a possuiremos” e “… nivelar o local” não apenas expõe os EUA a uma anexação estrangeira chocantemente ilegal, mas é o tropo vergonhosamente ultrapassado e com esteroidesde do: “não há palestinos”.
Mas isso está longe de ser “pura loucura”, como definido por think tanks dos EUA por todos os lugares. É uma extensão natural de tentar comprar a Groenlândia, tentar anexar o Canadá (em ambos os casos, um aumento na base de recursos dos EUA), tomar o Canal do Panamá e rebatizar o Golfo do México como Golfo da América.
Trata-se de mudar de assunto e da narrativa predominante em vez de abordar a verdadeira ameaça ao Império: a parceria estratégica Rússia-China.
Neste caso, a nova Riviera de Gaza construída sobre uma pirâmide de ossos não é apenas endossada, mas já idealizada pelos genocidas em Tel Aviv, em conjunto com os doadores bilionários de Trump, uma parte fundamental do lobby israelense nos EUA.
A visão de Trump, de acordo com fontes de Nova York, veio de seu genro Jared Kushner, que pelo menos há um ano já falava sobre o ouro imobiliário representado pela costa de Gaza. Kushner é ainda mais perigoso agora que está agindo nos bastidores do segundo mandato de Trump: ele é o principal influenciador do Presidente da República dos EUA quando se trata de uma possível ocupação futura de Gaza sancionada pelos EUA.
No momento, temos um ethos de um reality show de Deportação-Construção-Venda aplicado ao problema mais insolúvel da Ásia Ocidental. Marandi o chama de “problema EUA-Israel”. Taha Ozhan, do Instituto Ankara, o qualifica como “a ordem centrada em Israel”, tanto quanto “o problema americano”.
Viver sob uma ‘mudança de regime global’
As discussões em Valdai, é claro, extrapolaram a bomba semiótica de Trump sobre Gaza. Ozhan focou no “imenso teste de estresse” na Ásia Ocidental – do genocídio em Gaza até “Assad deve sair” metastatizado na Al-Qaeda em ternos governando Damasco. Ele alerta que o atual caos global pode gerar novas guerras: Estamos agora em um processo de “mudança de regime global”, onde “uma instabilidade sustentável acabou”.
A presença palestina no Valdai foi via Ministro do Desenvolvimento Social da OLP, Ahmad Majdalani, e não foi exatamente animadora. Ele agitou os pontos de discussão habituais, como o problema da “normalização das relações entre a Arábia Saudita e Israel com o pano de fundo da anexação da Cisjordânia”, enquanto “outras nações muçulmanas apenas assistem de fora”.
Majdalani também se perguntou se “os BRICS serão capazes de funcionar como um contrapeso efetivo” ao “problema americano”, conforme definido por Ozhan. Mas na questão tortuosa da unidade palestina, ele não ofereceu nada de novo, e continuou reclamando sobre a impossibilidade dos “Acordos de Abraão sem o povo palestino”.
O eminente Vitaly Naumkin, presidente do Instituto de Estudos Orientais da Academia Russa de Ciências, publicou um excelente relatório sobre a Síria, em coautoria com Vasily Kuznetsov, também do Instituto de Estudos Orientais.
Embora enfatizem que a queda do antigo presidente sírio Bashar al-Assad representa uma “janela de oportunidade” para Israel, à Turquia e às monarquias do Golfo, eles destacam as nuances.
O que Israel realmente está fazendo? “Estabelecer controle direto sobre certos (quais exatamente?) territórios ou criar uma ampla zona de proteção?”
Na Turquia, “o interesse de Ancara em infligir uma derrota estratégica aos curdos e talvez criar uma zona-tampão ao longo da fronteira sírio-turca é compreensível”. O que ainda não está claro é “a extensão do compromisso [americano] em investir nos curdos” sob Trump.
Sobre as monarquias do Golfo, “elas irão fortalecer suas posições principalmente usando de influência econômica”. No entanto, os interesses de vários países do Conselho de Cooperação do Golfo podem variar, e seu alinhamento nem sempre é claro”.
Quanto ao Irã, Naumkin e Kuznetsov realisticamente apontaram que, caso a nova situação síria, anteriormente extremista, “não consiga consolidar a sociedade – e essa é uma forte possibilidade – o Irã poderá ter mais uma chance de reestabelecer sua influência”.
Na opinião de Naumkin, as bases russas na Síria “devem ficar” – tópico que, por sinal, é motivo de acalorados debates nos corredores de poder de Moscou. Ele defende essa posição principalmente porque a Rússia “poderia equilibrar as intenções expansionistas de algumas facções turcas ao norte da Síria”.
Corredor-mania
Embora a recém assinada parceria estratégica Rússia–Irã não tenha sido discutida em termos específicos em Valdai, Marandi observou que “o Irã está se movendo rapidamente no tocante ao que tem que ser construído, porque isso irá criar uma aproximação econômica com a Índia”.
O cerne do acordo Rússia–Irã não é militar: é geoeconômico e centrado no Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul (INSTC), ponto chave do projeto de conectividade e integração Eurásia/BRICS.
O INSTC é, de fato, um acelerador do comércio entre os membros dos BRICS Rússia, Irã e Índia, que fatalmente irá aumentar os pagamentos em suas próprias moedas: é exatamente esse o tipo de mecanismo que levou Trump a – equivocadamente – “acusar” os BRICS de tentarem criar sua própria moeda. Rússia e Irã, ambos severamente sancionados, já fazem forte uso de rublos e rials em seu comércio bilateral.
Quanto ao front geoeconômico mais amplo, pode-se afirmar que a contribuição mais estimulante em Valdai foi a de Elchin Aghajanov, diretor da Rede de Política e Segurança Internacionais de Baku. Um sopro de ar fresco vindo do Sul do Cáucaso criou um forte contraste com os sombrios furacões geopolíticos que ameaçam o Oeste Asiático.
Aghajanov ressaltou a soberania azeri – contra a hegemonia, ao mesmo tempo em que reconhece as aspirações geoestratégicas do ocidente”. Ele descreveu o Azerbaijão como uma “encruzilhada de corredores de transporte”, pelo menos treze corredores, o que o levou a cunhar essa lindeza”: corredor-mania (itálicos meus). Ao longo de toda a história, o Sul do Cáucaso sempre foi um nó geoeconômico de importância crucial na Eurásia.
A Corredor-mania abrange todos os projetos que vão da TRACECA ao Corredor do Meio Chinês, ao Transcaspiano e ao INSTC, para não mencionar o tão controverso corredor Zangezur – apoiado pelo Ocidente – que deverá cortar 40 quilômetros de território armênio na fronteira com o Irã. O Zangezur seria ligado a ramais das Novas Rotas da Seda indo de Xinjiang e da Ásia Central até a Turquia, e também conectado ao Transcaspiano.
Aghajanov afirmou peremptoriamente que, com o Zangezur, o Azerbaijão não tem qualquer intenção de anexar terras armênias. Baku também quer que sua operação chegue ao Irã através de uma ligação Irã-Armênia. A posição de Teerã é que, contanto que não haja anexação – nesse caso, a melhor opção seria subterrânea – o corredor pode ir adiante. Aghajanov se referiu à ligação Azerbaijão–Irã cruzando o Rio Aras: “O falecido presidente [iraniano] Ebrahim Raisi dava seu forte apoio.”
Aghajanov também ressaltou que como o Azerbaijão é um “aliado natural da Turquia e do Paquistão”, o mesmo deveria se aplicar ao Irã, onde vivem pelo menos 13 milhões de azeris étnicos.
Ele define a Rússia como um “aliado estratégico natural”. Ele também elogiou um corredor bem mais ao norte, a Rota do Mar do Norte: “O caminho mais curto entre Nova York e a China é passando por Murmansk. Assim como o caminho mais curto entre o Brasil e a China é passando por São Petersburgo”.
Enquanto os cães da guerra continuam latindo, a corredor-mania segue de vento em popa. Mas, primeiramente, o Oeste Asiático tem que realmente enterrar a ridícula ideia de Trump de uma Riviera de Gaza.
Publicado em The Cradle.