A presente análise foi publicada poucos dias após o resultado eleitoral de 2022. Entretanto, é tão premonitória que não apenas continua válida como elucida perfeitamente o atual momento, permitindo entender tanto as decisões na política interna como externa do atual Governo Lula 3.
Autoria Marcus Atalla, editor em VeritXpress, graduado em Imagem e Som e em Direito, especialização em Jornalismo e em Jornalismo Investigativo.
Análise: mudanças na acumulação de capital, legislativo e sociocultural serão tensões permanentes no Governo Lula
Entender o momento histórico atual é elemento fundamental para se entender os possíveis cenários de um novo Governo Lula. Desconsiderar a mudança do ciclo histórico no Brasil e no mundo pós-2014, acarreta análises políticas equivocadas sobre a realidade atual.
Após o resultado eleitoral, o Instituto de Economia da UFRJ promoveu o evento, “Eleições e o Futuro Governo: Uma Avaliação Preliminar”. Os palestrantes foram o Prof. Jairo Nicolau, pesquisador do FGV, e o vice-diretor do IE-UFRJ, Eduardo Costa Pinto, pesquisador em economia política brasileira e internacional, e o bloco no poder no acúmulo capitalista.
Para Eduardo, avaliar o resultado eleitoral trouxe a capacidade de se compreender o novo perfil médio do eleitor brasileiro. Sobretudo, após a quebra nas expectativas criadas a partir das pesquisas eleitorais, as quais sinalizavam um voto muito menor no Bolsonaro. A diferença entre os votos em Lula e Bolsonaro foram pequenas, mas refletem e expressam os interesses e a nova configuração de uma sociedade brasileira partida.
A divisão social não é por essa lógica inventada de uma polarização. A divisão que estamos vivendo, não é apenas a fake news stricto sensu, nem é apenas discursiva. Fake news e polarização só colam se tiver fundamento em algum grau da realidade. As pesquisas eleitorais mostraram um profundo corte na questão da renda, divisão de classe social, regionalidade, gênero e racial.
Na leitura de Eduardo, foi a eleição que mais explicitou um voto articulado com a questão de classe. Essa eleição refletiu o que é hoje a sociedade brasileira, quer se goste ou não. Nunca se jogou tanto dinheiro às vésperas de uma eleição. Houve transferência direta do governo; aumento de auxílios, orçamento secreto, transferência de renda a setores específicos; além da compra direta do voto nas pequenas prefeituras. Mesmo assim, a população de mais baixa renda, de 1 a 2,5 salários mínimos, não votou no Bolsonaro. O efeito da derrama foi pequena, principalmente no Nordeste.
O voto de parte do andar de cima e das camadas sociais médias foram predominantemente no Bolsonaro e pelo mapa territorial, ficou claro que do Centro-Oeste ao Sul há um voto articulado do agronegócio que vai além do bolsonarismo. Nas regiões em que o agronegócio é muito forte, houve um desenvolvimento econômico durante o Governo Bolsonaro, o que gerou empregos e renda. Esses votos tiveram uma conexão com os interesses imediatos da população.
Nos anos 90, os votos no PT eram concentrados nas camadas médias, servidores públicos e num perfil específico em alguns espaços territoriais. O Nordeste não votava no PT, foi só após os governos petistas que os eleitores de baixa renda passaram a votar no Partido dos Trabalhadores, o que André Singer chamou de realinhamento eleitoral.
A hipótese levantada por Eduardo é haver uma reconfiguração no andar de baixo da sociedade, uma “mexida das placas tectônicas”. São mudanças ainda não compreendidas plenamente, efeitos da incorporação pela via da renda, acesso a determinados bens básicos, acesso à Universidade e a espaços que uma enorme parte da sociedade sempre foi deixada de fora.
A mexida nas placas tectônicas do andar de baixo
Os governos do PT não souberam lidar com os efeitos do sucesso. Quando se faz uma ascensão, tem que se ir a uma etapa acima àqueles que ascenderam, as pessoas quererão continuar ascendendo e não permanecerem estagnadas. E ao se fazer o Brasil ascender externamente, é claro que haveria retaliações.
Há duas dimensões importantes para se pensar. Esse grupo ascendeu, olha para baixo e pensa: aquele está pior, melhor eu me segurar como estou. É preciso considerar que nos governos petistas as condições materiais em 2015 e 2016 pioraram. O desemprego aumentou rapidamente em 2016, evidente que após o golpe aumentou muito mais, mas ninguém poderia saber disso. Uma parte do eleitor pensa que o PT deu, mas depois tirou [a imprensa corporativa persuadiu que o governo Temer era do PT].
No Sudeste houve melhoras, mas também perdas, foi um check and balance e o ganho foi menor. No Nordeste, o voto teve a ver com o tamanho da política pública e uma maior melhora. Porém, as pessoas não tinham água, nem luz e o aumento do salário mínimo teve um maior impacto. Esses elementos colocaram-nos no consumo do século XX e numa mudança profunda na qualidade de vida. Eles têm a memória da significativa melhora social. Lá têm-se evangélicos tanto quanto no resto do país.
Os ascendidos não aceitam mais serem jogados de volta para baixo e essas mudanças profundas não levam necessariamente para o campo da esquerda, quem subiu em um contexto de escassez, tem muito medo de descer e evoca dimensões de medos e ódios.
A segunda dimensão é que em alguns momentos históricos ocorrem uma desconexão nas camadas sociais médias. Se você olhar quem entrou nas classes médias, no governo Lula, são parte desses evangélicos e hoje eles votam contra, não necessariamente é o interesse imediato. Pois, votaram contra quem os fez ascender socialmente e por quê?
Não é apenas fruto da fake news, tem a ver com uma profunda dificuldade de ver o futuro. Isso é um fenômeno que avança não somente no Brasil, mas no mundo. Está articulado com o esgarçamento e a dificuldade de um padrão de acumulação neoliberal. Os trabalhadores industriais e outros que votavam na esquerda, passaram a votar na extrema-direita.
A extrema-direita observou esse fenômeno de inquietação sobre o futuro e apresentou propostas que vão contra o sistema. Promete que irão melhorar as condições materiais, mesmo sendo uma questão discursiva, promete que irá entregar alguma coisa material ou simbólica.
Tem-se a incerteza profunda no mundo do trabalho, mais ainda, o que será dos filhos, o que vai ser a vida no futuro. O trabalhador mata um leão por dia e pode perder o emprego, a classe média passa décadas se graduando para ao fim trabalhar como Uber. As pessoas procuram algo para se alicerçar, alguma coisa que dê um grau de segurança, mesmo que seja no mundo simbólico.
E essa segurança vai para valores: família, religião, tradição, qualquer coisa que dê algum lastro. Parte da sociedade se agarra na dimensão ideológica pela profunda escassez deste momento histórico. Há uma falta de perspectiva, futuro incerto e ainda convencem a mim que querem distorcer a cabeça dos meus filhos e da minha família. Há um efeito Coringa [filme Joker de Todd Phillips], luta-se contra o sistema, mas de forma individualizada, um sistema abstrato que não é possível identificar quem é o responsável e quais as causas.
Isso pode gerar qualquer coisa, pode gerar ódio de classe como está cada vez mais explícito e não necessariamente canalizar os sentimentos para uma transformação positiva. É nesse caldo de tensões que a “guerra cultural” e a guerra dos valores ganham um peso enorme. Não é só uma característica brasileira, o medo do “marxismo cultural” e o avanço da extrema-direita é mundial.
O Brasil está cada vez mais parecido com as formas estruturais da sociedade estadunidense.
Essa dimensão simbólica articula com a questão norte-americana, o Brasil está cada vez mais parecido com as formas de estrutura da sociedade estadunidense. O que estaria destruindo as relações básicas seria a guerra cultural, o “marxismo cultural”, não importa que isso seja fantasioso, as pessoas se movem a partir do que acreditam.
O bolsonarismo é copia e cola das ideias da extrema-direita estadunidense [Alt-Right]. Há elementos da extrema-direita dos anos 20 e 30. Ela é comunitarista de direita, não é apenas neoliberal, que defende um Estado mínimo. Para ela, o mercado não pode estar acima dos valores. Os valores são os ocidentais-judaicos-cristãos, qualquer coisa que mude o padrão, é considerado marxismo cultural.
Os militares, assim como o bolsonarismo, estão impregnados com a doutrina da extrema-direita, marxismo cultural [Twitter Gal. Villas boas à véspera do 2º turno]. Há uma reconfiguração no Congresso, o antes “Centrão”, é um “Direitão” e não será apenas fisiológico, mas tem também uma articulação ideológica. Há uma extrema-direita orgânica e votará ideologicamente. São fragmentados, porém, enquanto movimento, articulam-se nas questões de valores. [Isso já ocorre com a bancada da bala, boi e bíblia. Na prática, funcionam como um partido programático oficioso].
Quando for verba para educação, cultura etc., vão votar contra, dirão que a verba será para criar valores comunistas que destruirão a sociedade ocidental-judaica-cristã. [O senador general Hamilton Mourão declarou, em entrevista ao canal TV Clube SJN (08/11), que será oposição e votará contra tudo que não seja “liberal” e seja intervenção do Estado].
O que difere o Brasil dos EUA, é que os mais pobres votaram no Lula e houve a possibilidade de se ganhar as eleições pelo campo popular, na Europa e nos EUA a extrema-direita é muito mais popular. [A discórdia só aumenta, a sinergia pelos mesmos métodos entre os contrários que se retroalimentam, alt-right e woke, não permite uma discussão econômica e política, apenas choques de visões culturais de um mundo simbólico. O que impossibilita qualquer consenso].
A trégua entre a burguesia brasileira e Lula já acabou
A despeito da divisão do país, não há divisão no bloco no poder. A maioria foi com Bolsonaro e foi por interesses. Foi porque ganhou mais e não por ideologia. Um pequeno segmento apoiou Lula, mas só no segundo turno, quando o resultado eleitoral do 1º turno mostrou que o fenômeno Bolsonaro era muito maior que o imaginado. Até a véspera do 1º turno, estavam assinando documento em apoio a Tebet. Não estavam entendendo o tamanho da encrenca na questão democrática. [O governo Lula nem sequer começou e a pressão é enorme].
Nesses últimos anos, o bloco no poder do capitalismo brasileiro nunca ganhou tanto, muito mais que no governo Lula. Ao se olhar os dados das maiores empresas brasileiras de capital aberto na CVM -Comissão de Valores Mobiliários – será visto que as taxas de lucros tiveram um forte crescimento desde o golpe de 2016. Pouca gente discute isso, mas os dados são muito impressionantes. A curva sobe vertiginosamente de 2016 a 2021.
O aumento é em todos os setores, não apenas no setor financeiro. Tanto as taxas de lucro como as massas de taxas lucros, cujo processo de concentração e centralização de renda foi enorme. Em 2021, o lucro foi maior que em 2010, ano em que o crescimento do PIB brasileiro foi de 7,5%. Mesmo na pandemia com a queda do PIB em 4%, a taxa de lucro médio do setor não financeiro foi de 8%. A indústria de transformação teve uma taxa de retorno de 30%, em 2021,
A razão dessas taxas de lucro impressionantes é que, desde 2016, houve uma reconfiguração no padrão de acúmulo capitalista no Brasil. Arrochou-se o trabalhador, retiraram-se direitos trabalhistas e as reformas permitiram o aumento da mais-valia absoluta e relativa. Uma das reduções dos custos significativos é no custo direto e indireto da força de trabalho. O direto pela precarização e o indireto, porque as grandes empresas não precisam colocar em caixa enormes recursos que tinham que pagar na Justiça do Trabalho, a qual desapareceu. Os custos para as empresas tornaram-se recurso livre.
Por isso, apoiaram Bolsonaro, por interesse econômico, é o capitalismo na periferia do sistema. Por mais incrível que pareça, todos os golpes ocorreram no Brasil por causa de aumento salarial. Isso ocorreu em 1916, 1964 e 2016, basta comparar a curva do salário mínimo e às datas dos golpes pelo IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
Se em outro momento histórico, o projeto do Governo Lula seria visto como uma social-democracia tímida, hoje a burguesia acha que isso é bolchevique
Lula deixou muito claro que será um governo de uma frente ampla, ao mesmo tempo, Lula não tirou da pauta a questão social, emprego, renda e investimento. O governo de frente ampla não é uma carta aos brasileiros de 2002.
Os cinco pontos que o Lula tem destacado, desde novembro de 2016, mexer na política de preço e estrutura da Petrobras, colocar o pobre de volta ao orçamento, colocar o rico no imposto de renda, rever a reforma trabalhista e aumentar o investimento. Qualquer um desses 5 pontos gerarão uma profunda mudança no conflito distributivo da sociedade brasileira. No curto prazo haverá uma redução das taxas de lucro.
Mudança da reforma trabalhista,mesmo amenizada, e só o fato de dar direitos sociais aos trabalhadores implicará numa redução na taxa de lucro. Por isso os empresários insistem em deixar a reforma trabalhista como está.
Petrobras, mudança na política de preço e retomar ao investimento na empresa
Necessariamente, se quiser direcionar à Petrobras para aumentar investimentos, necessariamente terá que se reduzir o tamanho do lucro e dividendos. Em um ano e meio foram distribuídos 237 bilhões em dividendos aos acionistas. A Petrobras virou uma grande máquina de gerar caixa, após as mudanças regulatórias no Governo Temer.
Fico me perguntando, a guerra na Ucrânia gerou um grande problema para o Brasil, mas como, se temos uma enorme renda petrolífera, somos exportadores de commodities e o ciclo de commodities está com o valor lá em cima, quem é que está se apropriando dessa renda petrolífera?
A Petrobras tem retorno sobre o patrimônio líquido beirando a 30%, enquanto a média das petroleiras internacionais estão com 11%. Mexer nesse vespeiro significa redefinir para quem vai toda essa renda, sendo que 40% do capital é enviado ao estrangeiro.
Colocar pela primeira vez o rico no imposto de renda passa obrigatoriamente pela taxação de lucros e dividendos. Apenas da Petrobras, dos 236 bilhões recebidos por acionistas não se pagou nenhum tipo de imposto. Qualquer mudança gerará enormes tensões, é definir quem irá ganhar e quem irá perder.
O Gráfico acima mostra a síntese dos resultados da Petrobras: Nunca se gerou tanto caixa na geração operacional da Petrobras, em virtude dos baixos custos do pré-sal e da Política de Preços dos derivados. Esses recursos financeiros foram, em grande parte, distribuídos na forma de dividendos, pois os investimentos continuam baixos (despesas de capital R$ 31 bilhões) e as amortizações da dívida estão em patamares baixos. A Petrobras reduziu (9M22) os seus recursos em caixa equivalentes (R$ 24 bilhões), para pagar dividendos (R$ 173 bilhões pagos nos 9M22). Vão deixar a Petrobras no osso em 31/12/22, com o menor caixa. (Por Eduardo Costa Pinto).
Lula tentará, se irá alcançar é outra coisa. Tentará porque realmente se preocupa com os mais pobres, dada a sua origem, e ele quer entrar para a história como maior que Getúlio. Ele não iria voltar para não fazer mais do que fez no período que governou. Sendo agora um período que é muito mais difícil.
Esse é o momento histórico que vivemos e é preciso compreendê-lo
É um momento histórico que se tem de um lado uma extrema-direita e uma burguesia ganhando muito. Por outro lado, interesses exigindo uma democracia plena, uma democracia social, muito mais que a atual democracia liberal formal. O quanto o bolsonarismo e os militares agitarão, tem de esperar para ver.
O Congresso irá se pautar por questões de extrema-direita. Será um governo de tensão permanente. E essa tensão permanente não acontecerá só no campo de centro ou centro-esquerda versus extrema-direita, mas também, pelas taxas de lucros tanto do agronegócio quanto da indústria de transformação.
Em um primeiro momento, essa burguesia irá chiar pela diminuição da taxa de lucros no curto prazo, mas se Lula conseguir o “time certo”, à construção de uma economia de consumo de massa, as taxas de massas de lucro retornarão, mas o quanto essa burguesia vai esperar e outra coisa.
As mexidas das placas tectônicas no andar de baixo liberaram energias das mais profundas, que se canalizadas poderão finalmente construir um Brasil com uma dimensão de justiça e igualdade. Essa população não aceita ser empurrada de volta ao limbo, irá tencionar cada vez mais e não necessariamente na direção que se gostaria, ou que seja a melhor.
Para Eduardo, se não houver um projeto ousado, inovador e de coragem, fracassaremos em nosso projeto civilizatório de reconstrução do país, não se trata de um voluntarismo político do executivo. Se não forem construídas políticas públicas com elementos de subsídios, geração de empregos e investimento, a extrema-direita voltará ainda mais forte, assim como está ocorrendo por toda a Europa e nos EUA.
Publicado originalmente em Jornal GGN (15 de novembro de 2022).