Autoria Pepe Escobar, jornalista veterano independente brasileiro, autor e analista especialista em geopolítica. Colaborou com dezenas de veículos de imprensa nos EUA, Europa e Ásia.
Não era para ser uma Yalta. Mas uma Yalta 2.0 pode vir a acontecer em algum momento futuro. Na parada do Dia da Vitória em Moscou, em 9 de maio próximo, celebrando os 80 anos do fim da Grande Guerra Patriótica e da derrota da Alemanha nazista, Putin como anfitrião e Xi Jinping como um dos principais convidados estarão presentes. E talvez Donald Trump também esteja. Por que não embarcar todos eles em um voo para a Crimeia e realizar uma Yalta 2.0 em – onde mais seria – Yalta?
“Doces sonhos são feitos disso”, citando os metafísicos pop do Eurythmics. Enquanto isso, não tivemos uma Yalta, nem ao menos uma Reykjavik; tivemos longas 4,5 horas no palácio real de Ed-Diriyah, no vale de Wadi Hanifa. Rússia e Estados Unidos, finalmente, se sentaram à mesa para discutir como adultos – pela primeira vez em três anos.
Uma deliciosa dose de excitação foi devidamente servida – relacionada às partes envolvidas no trabalho de “normalização das relações diplomáticas”. Até três meses atrás – no governo do Cadáver da Casa Branca” e de seu Secretário do Genocídio – essa possibilidade era tão remota quanto a de um meteorito se chocar contra a Terra (o que vai acontecer, mas em um futuro distante).
O Secretário de Estado dos Estados Unidos, Marco Rubio, desempenhou a façanha sobre-humana de não desabar frente ao Poderoso Lavrov, o maior diplomata do planeta. Lavrov e Rubio concordaram em criar de um mecanismo de consulta para eliminar “irritantes” (terminologia americana) nas relações Estados Unidos-Rússia e cooperar em “questões de interesse geopolítico em comum), segundo o Departamento de Estado. Os BRICS talvez não sejam uma delas.
Esse “eliminar irritantes’’ pode ser facilmente interpretado como linguagem cifrada para o Trump 2.0 tentando encontrar soluções para o tsunami de sanções e guerra econômica do governo anterior, que só produziram consequências espetacularmente desastrosas.
Como era de se esperar, os americanos enfatizaram que “uma única reunião não é suficiente para solucionar o conflito ucraniano”. Claro que não. O consultor presidencial Yuri Ushakov observou que o próprio Putin decidirá “quando terão início os contatos com os Estados Unidos sobre a Ucrânia”, e quem serão os negociadores russos.
Lavrov desmentiu categoricamente a existência de um plano de “três fases” para a Ucrânia, incluindo um cessar-fogo, eleições e a assinatura de um acordo final. Com base em um cuidadoso exame do ocorrido até o presente, Lavrov sempre insistiu que os Estados Unidos “são incapazes de acordos”.
O enviado especial de Trump Steve Witkoff estava positivamente radiante:
“Não poderíamos ter imaginado um resultado melhor para esta sessão”. Bem, Witkoff certamente seguiu o dinheiro – a prioridade suprema de Trump – quando ele e a delegação americana ficaram totalmente “surpresos” ao saber que “as empresas dos Estados Unidos perderam 300 bilhões de dólares ao deixar a Rússia”, tal como revelado pelo CEO do Fundo Russo de Investimentos Diretos Kirill Dmitriev.
Como ocorreu com o fiasco sobre os BRICS, parece que a Equipe Trump não vem fazendo seu dever de casa também no front empresarial.
Como a guerra geoeconômica foi vencida
Com base no que ocorreu em Riad, é cedo demais para se gabar de Washington, no Trump 2.0, ter declarado que a Ucrânia – com seu minúsculo narco-fuhrer – chegou ao fim. O que sobrou da Ucrânia sobreviverá de uma forma ou de outra, mas não há a menor clareza quanto ao “que” será a Ucrânia pós-guerrra.
Quanto à Rússia estar na vanguarda do projeto de uma nova ordem mundial, parece que é isso mesmo. Um Novo Grande Jogo está começando agora, a uma distância de anos-luz da trama oitocentista original – britânica – e muito mais próxima de como o Novo Grande Jogo foi imaginado em inícios da década de 2010, quando os chineses criaram o conceito de Novas Rotas da Seda.
Ver Washington e Rússia proclamando “levar em conta os interesses um do outro” significa automaticamente que o Império do Caos vem perdendo seu poderio e sendo forçado a sentar à mesa e ouvir (Lavrov ressaltou o fato de termos efetivamente ouvido um ao outro).
Quando ambas as delegações ressaltam que um encontro pessoal entre Trump e Putin seria muito difícil de programar, podemos interpretar que isso, em linguagem cifrada, significa que o Deep State dos Estados Unidos será forçado a criar uma narrativa palatável para o que de fato é uma patente derrota estratégica em uma guerra por procuração fracassada.
Mais além da proverbial torrente de versões sobre quais seriam os verdadeiros motivos de Trump se aproximar da Rússia, gerando até mesmo deliciosas insinuações sobre uma viagem alucinatória em um tapete mágico – ao som do Steppenwolf e do Jefferson Airplane – é bem possível que essa seja apenas uma viagem fictícia.
Ou algo muito mais sinistro: Trump atiçando a ralé europeia para uma nova Grande Guerra contra a Rússia antes de 2030, que os americanos assistirão de longe.
O que é certo é que Trump quer normalizar a Rússia para parar de perder dinheiro na Ucrânia – aqueles trouxas europeus que entrem com a grana – e se concentrar no que realmente importa: a guerra tecnológica e geoeconômica com a China, que Pequim já ganhou em diversos setores sem lançar um único HIMARS, em vez de se concentrar nos sucessos do plano Made In China 2025.
Quanto aos otários europeus, que Trump decididamente abomina, eles se reuniram em Paris para um glorioso evento contracúpula: a Liga dos Perdedores, para discutir – o que mais seria? – suas Guerras Eternas e o que eles farão para enviar suas tropas “pacificadoras” – que eles não têm, com armas que eles não têm – para a Ucrânia.
Aquele vira-lata que posa de primeiro-ministro britânico está prometendo colocar “botas no solo”, enquanto a tóxica Medusa von der Lugen continua a vociferar no seu melhor estilo chihuahua belicista. Até mesmo outros cães raivosos como a Polônia, juntamente com os poodles Alemanha, Itália e Espanha, disseram “não” à avalanche de coturnos Dr. Martens britânicos.
Nas atuais circunstâncias, o que aconteceu em Riad foi apenas um primeiro passo – uma espécie de reconciliação Estados Unidos-Rússia, semelhante à longa détente de fins dos anos 60 até meados dos anos 70; ao Gorbachev-Reagan em 1986-1989, ao Gorbachev-Papai Bush em 1989-1991 (que acabou com o colapso da URSS); e ao Medvedev-Obama em 2009 (que acabou com a destruição da Líbia).
Até o momento, portanto, temos zero fatos. Além dos que as forças russas continuam criando nos campos de batalha da Novorossiya. Esses fatos novos criados no terreno tornarão as coisas ainda mais tenebrosas para os americanos, já que a ultraproblemática negociação sobre a Ucrânia se prolongará pelo menos por alguns meses.
Deixemos a última palavra com o sensato Lavrov: “Quando os interesses nacionais se alinham, temos que fazer todo o possível para unir esforços nessa direção, em prol de projetos mutuamente benéficos, tanto na esfera geopolítica quanto nas questões econômicas”. Lavrov está convencido de que os americanos, agora, “entendem melhor nossa posição”.
Será esse o caso – ou esse seria apenas mais um episódio de um incansável reality show? Que comece o Novo Grande Jogo.