Por VeritXpress
De autoria de Pepe Escobar, jornalista investigativo independente brasileiro, especialista em análises geopolíticas, publicado em The Cradle.
Em todo o Sul Global, os países fazem fila para se juntarem aos BRICS e as suas promessas de um mundo multipolar e um futuro livre do Hegemon. Esse aumento vertiginoso do interesse pelos BRICS se tornou o inevitável tema das discussões no decorrer deste ano crucial da presidência russa daquilo que, até agora, é o BRICS10.
A Indonésia e a Nigéria estão entre os principais candidatos com probabilidade de adesão. O mesmo se aplica ao Paquistão e ao Vietnam. O México está numa situação muito complexa: como aderir sem invocar a ira do Hegemon.
E depois, há as novas candidaturas em alta, do Iêmen, que conta com bastante apoio da Rússia, da China e do Irã.
Coube ao principal sherpa russo nos BRICS, o imensamente capaz vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Ryabkov, esclarecer o que está por vir. Ele disse à TASS:
“Devemos proporcionar aos países interessados na aproximação com os BRICS uma plataforma onde possam trabalhar praticamente sem se sentirem deixados para trás na prática e consigam acompanhar nosso este ritmo de cooperação. E quanto a forma de como será decidida a futura expansão – isto deve será adiado pelo menos até que os líderes se reúnam em Kazan para discutir.”
A decisão chave sobre a expansão do BRICS+ só sairá na cimeira de Kazan, em outubro próximo. Ryabkov ressaltou que a ordem do dia é primeiro, “integrar aqueles que acabaram de entrar”. Isso significa que, “como um ‘dez’, trabalharemos com a mesma eficiência, ou melhor, com que trabalhávamos como os ‘cinco’ iniciais.”
Só então os BRICS-10 “desenvolverão a categoria de estados parceiros”, o que, na verdade, significa criar uma lista de consenso a partir das dezenas de nações que estão literalmente ansiosas para aderir ao clube.
Ryabkov sempre faz questão de salientar, em público e em privado, que o duplo aumento de membros do BRICS a partir de 1 de Janeiro de 2024 é “um acontecimento sem precedentes em qualquer estrutura internacional”.
Não é uma tarefa fácil, diz Ryabkov:
“No ano passado, demorou um ano inteiro para se estabelecer os critérios de admissão e expansão no nível do primeiro escalão de funcionários. Muitas coisas razoáveis foram desenvolvidas. E muitas das coisas que foram formuladas naquela época refletiram na lista de países que se uniram. Mas provavelmente seria inoportuno formalizar as exigências. No final das contas, a admissão à associação é uma questão de decisão política.”
O que acontece depois das eleições presidenciais na Rússia
Numa reunião privada com alguns poucos indivíduos selecionados nos bastidores da recente conferência multipolar em Moscou, o Ministro das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, falou efusivamente dos BRICS, com especial ênfase nos seus homólogos Wang Yi da China e S. Jaishankar da Índia.
Lavrov tem grandes expectativas para o BRICS-10 neste ano – ao mesmo tempo, lembra a todos que este ainda é um clube; mas a organização deverá se aprofundar institucionalmente, por exemplo, nomeando um secretariado-geral, tal como a sua organização prima, a Organização de Cooperação de Xangai (OCX).
A presidência russa terá muito trabalho durante os próximos meses, não só navegando no espectro geopolítico das crises atuais, mas, acima de tudo, na geoeconomia. Uma reunião ministerial crucial em junho – daqui a apenas três meses – terá de definir um roteiro detalhado até à cimeira de Kazan, que ocorrerá quatro meses após.
O que acontecer depois das eleições presidenciais russas desta semana também condicionará a política dos BRICS. Um novo governo russo tomará posse apenas no início de maio. É amplamente esperado que não haja mudanças substanciais no Ministério das Finanças russo, no Banco Central, no Ministério das Relações Exteriores e nos principais conselheiros do Kremlin.
A continuidade será a norma.
E isso nos leva ao principal dossiê geoeconômico: os BRICS na vanguarda para contornar o dólar americano nas finanças internacionais.
Na semana passada, o principal conselheiro do Kremlin, Yury Ushakov, anunciou que o BRICS trabalhará para estabelecer um sistema de pagamento independente baseado em moedas digitais e blockchain.
Ushakov ressaltou especificamente “ferramentas de última geração, como tecnologias digitais e blockchain. O principal é garantir que sejam convenientes para governos, pessoas comuns e empresas, bem como um bom custo-benefício econômico e livres de políticas”.
Ushakov não mencionou isso explicitamente, mas já existe um novo sistema alternativo. No momento, é um projeto cuidadosamente guardado na forma de um detalhado white paper, que já foi aprovado academicamente e que também incorpore as respostas às possíveis dúvidas vindouras.
The Cradle foi informado sobre o sistema por meio de várias reuniões desde o ano passado com um pequeno grupo de especialistas em finanças de nível mundial. O sistema já foi apresentado ao próprio Ushakov. Tal como está, está prestes a receber a luz verde do governo russo. Depois de passar por uma série de testes, em tese, o sistema estará pronto para ser apresentado a todos os membros do BRICS-10, antes da cúpula de Kazan.
Tudo isso relaciona-se com a declaração pública de Ushakov que sua tarefa específica para 2024 é aumentar o papel dos BRICS no sistema monetário/financeiro internacional.
Ushakov recorda que, na Declaração de Joanesburgo em 2023, os chefes de estado dos BRICS se concentraram no aumento de pagamentos em moedas nacionais e no fortalecimento das redes bancárias correspondentes. A meta era “continuar desenvolvendo o Acordo de Reservas Contingente, principalmente no que diz respeito ao uso de moedas que não o dólar americano”.
Não há moeda única no futuro próximo
Tudo o que foi dito acima enquadra-se na questão central que está sendo discutida atualmente na parceria sino-russa em Moscou, e, em breve, será mais aprofundada entre os BRICS-10: pagamentos de liquidação contornando o dólar americano, aumento do comércio entre “nações amigas” e controles sobre a fuga de capitais.
Ryabkov acrescentou elementos mais cruciais ao debate, ao dizer esta semana, que os BRICS não estão discutindo a implementação de uma moeda única:
“Quanto a uma moeda única, semelhante à criada pela União Europeia, isso dificilmente será possível num futuro próximo. Se estamos falando de formas de pagamentos mútuos como o ECU [Unidade Monetária Europeia] utilizada no início do desenvolvimento da União Europeia, pela ausência de um outro meio de pagamento, mas uma forma mais eficaz de utilizar os recursos disponíveis dos países em acordos mútuos para evitar perdas devido as diferenças nas taxas de câmbio, e assim por diante, então este é precisamente o caminho ao longo do qual, na minha opinião, os BRICS deveriam seguir. Isto está sendo considerado.”
A principal conclusão, segundo Ryabkov, é que os BRICS não deveriam criar uma aliança financeira e monetária; deveriam criar sistemas de pagamento e amortização que não dependa da inconfiável “ordem internacional baseada em regras”.
Essa é exatamente a ênfase das ideias e experimentos já desenvolvidos pelo Ministro da Integração e Macroeconomia na União Econômica Eurasiana (UEEA), Sergei Glazyev, que explicou, em entrevista exclusiva, e também falou sobre o pioneiro projeto em vias de ser aprovado pelo governo russo.
Ryabkov confirmou que “um grupo de especialistas liderado pelos Ministérios das Finanças e representantes dos respectivos Bancos Centrais respectivos [países dos BRICS]” vem trabalhando incessantemente nesse dossiê. Além do mais, há “consultas em outros formatos, e também com a participação de representantes do “ocidente histórico”.
As conclusões do próprio Ryabkov refletem aquilo que os BRICS como um todo têm como meta:
“Coletivamente, temos que apresentar um produto que seja, por um lado, bastante ambicioso (porque é impossível continuar a tolerar os ditames do Ocidente nessa área), mas ao mesmo tempo realista e com os pés no chão. Ou seja, um produto eficiente. E tudo isso deverá ser apresentado em Kazan para ser examinado pelas lideranças.”
Resumindo: o grande avanço talvez esteja literalmente batendo às portas dos BRICS. Tudo depende de um simples sinal verde do governo russo.
Agora compare os BRICS desenhando os contornos de um novo paradigma geoeconômico com o ocidente coletivo planejando o roubo dos ativos russos sequestrados para beneficiar o buraco negro que é a Ucrânia.
Além de ser uma declaração de fato dos Estados Unidos e da União Europeia contra a Rússia, essa medida traz em si o potencial de esmagar por completo o atual sistema financeiro global.
O roubo dos ativos russos, caso venha a ocorrer, irá no mínimo enfurecer pelo menos dois importantes membros dos BRICS, a China e a Arábia Saudita, países de considerável peso econômico. Uma medida como essa, caso implementada pelo Ocidente, destruirá por completo o conceito de estado de direito, que, em tese, embasa todo o sistema financeiro global.
A resposta russa será feroz. O Banco Central russo poderá, de imediato, processar e confiscar os bens da Euroclear belga, um dos maiores sistemas de liquidação e compensação, em cuja conta as reservas russas estavam congeladas.
E, além disso, o sequestro dos ativos da Euroclear na Rússia, que totalizam cerca de 33 bilhões de euros. Se a Euroclear for descapitalizada, o Banco Central Belga terá que revogar sua licença, provocando uma maciça crise financeira.
Esse é o conflito de paradigmas: a roubalheira ocidental versus comércio equitativo e um sistema de pagamentos e amortizações com base no Sul Global.