Autoria Pedro Marin, jornalista, autor, fundador e editor da Revista Opera, editor de Opera Mundi, analista geopolítico especialista em América Latina e militarismo.
A posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos foi como haveria de ser: barulhenta. Já no dia 20 de janeiro, seu primeiro no governo, pôs fim a 78 medidas do governo Biden e assinou outras dezenas de decretos, demarcando claramente ao eleitorado suas diferenças com o democrata – mesmo que uma parte dessas medidas possa cair ou ter efeitos restritos.
Na política internacional, as ações incluíram a saída dos Acordos de Paris e da Organização Mundial de Saúde (OMS), além da promessa de impor tarifas sobre produtos da China (10%), México e Canadá (25%), medida que foi assinada no último sábado (1).
As primeiras semanas de Trump também foram marcadas pela tensão com países latino-americanos, como Colômbia, Guatemala, Brasil e México, em torno da deportação de imigrantes.
As deportações espetaculares, com direito a torturas e privações, tiveram um fim triplo; primeiro, acenar a seu eleitorado, usando-as como elemento de propaganda; segundo, medir como cada país da região, que será fundamental em seu segundo mandato, reage (as diferenças entre Colômbia e Brasil, por exemplo, se tornaram evidentes neste caso); terceiro, dar demonstrações de como ele responderá a eventuais reações indesejadas – contra a Colômbia, que falou duro contra os flagrantes desrespeitos aos direitos de seus cidadãos e negou-se a deixar que os aviões trazendo os deportados naquelas condições pousassem, Trump ameaçou com a imposição de tarifas e sanções, antes de finalmente fazer um acordo com o presidente Gustavo Petro, deixando de lado suas ameaças e garantindo os direitos dos deportados.
Trump representa uma virada na política externa americana inédita desde o final da Segunda Guerra, uma tentativa de retorno ao isolacionismo americano. Por isolacionismo não se deve entender qualquer tipo de abrandamento no desejo imperial do país, mas simplesmente uma mudança na estratégia desta política, nos seus focos de atuação e nas forças sociais que hão de sustentá-la.
Desde sua fundação até a Segunda Guerra, era hegemônica nos Estados Unidos a visão que sua posição geográfica – protegido por dois mares e sem competidores importantes nas suas fronteiras –, bem como seus atributos, por assim dizer, “conquistados” – seu industrialismo e sua força militar –, lhes davam suficiente respiro para manter sua própria estabilidade política e econômica sem se preocupar com abalos advindos da Europa ou da Ásia. Bastava manter seu espaço vital – os países ao sul – exclusivamente sob seu porrete, ter algumas possessões ultramarinas e garantir a livre navegação, que a posição de poder daí decorrente se encarregaria de manter a América em primeiro lugar – o mote trumpista “America First”, a propósito, remonta ao America First Committee (AFC), organização isolacionista que se opunha à participação norte-americana na Segunda Guerra fundada em 1940 e fechada após o ataque a Pearl Harbor. Não por acaso, tal qual o governo Trump, havia forte presença de elementos fascistas no AFC, embora não se possa tratá-lo como uma organização fascista.
Na lógica isolacionista então prevalecente, a forma de atuação preferencial do imperialismo norte-americano era o incremento econômico “puro” e industrialista, em oposição à intervenção política associada ao financismo; seu espaço preferencial, o “hemisfério ocidental”, assim considerada a área imediata do Atlântico Norte e do Pacífico e os países ao sul; e as forças sociais a sustentar tal política, as burguesias industrial e agrícola.
A mudança da política externa americana, com a derrota absoluta do isolacionismo, veio justamente com a Segunda Guerra [1]. Por um lado, a negativa dos Estados Unidos em reordenar o mundo de acordo com sua vontade após o fim da Primeira Guerra era vista como uma das razões para o ressurgimento do militarismo alemão, que ao fim levara o país a embarcar em mais uma guerra fora de suas fronteiras; por outro lado, a própria posição alcançada pelos EUA após a Primeira Guerra, como um importante credor da Europa, demonstrava que a economia norte-americana não poderia mais progredir incólume enquanto os europeus guerreavam: o avanço da financeirização diminuía com voracidade os enormes mares que separavam a Califórnia da Ásia e a Virginia da Europa.
Por fim, havia o argumento de Nicholas Spykman, que teve enorme influência sobre a posição dos EUA no pós-Segunda Guerra: equilíbrio de poder é bom, mas melhor é ter uma certa reserva de poder. Ou, em suas palavras: “os Estados estão sempre empenhados em conter a força de algum outro Estado. A verdade é que os Estados estão interessados apenas em um equilíbrio que lhes seja favorável. Não um equilíbrio, mas uma margem generosa, é o seu objetivo. Não há segurança real em ser tão forte quanto um inimigo em potencial; há segurança apenas em ser um pouco mais forte. […] Seja qual for a teoria e a racionalização, o objetivo prático é a melhoria constante da posição de poder relativo do próprio Estado. O equilíbrio desejado é aquele que neutraliza outros estados, deixando o estado de origem livre para ser a força e a voz decisiva.”
O intervencionismo decorrente de tal posição e época levou os Estados Unidos a atravessarem no pós-guerra não só o Atlântico, para reorganizar a Europa de acordo com seu esquema de poder, mas também o Pacífico, estabelecendo igual modelo de governança, cultural e econômico na Ásia (Japão e Coreia do Sul especialmente). O incremento econômico norte-americano estaria, daí pra frente, completamente indissociável das finanças – de fato, literalmente se sustentaria na primazia do dólar –, que por sua vez dependeria da manutenção do novo esquema de poder. E, assim, ganhavam importância, por óbvio, as frações da burguesia americana ligadas ao impulso “mundializador”: as frações de serviços em geral, a financeira, a cultural.
O modelo de fato funcionou: a paz foi preservada por mais de sete décadas na Europa ocidental, a primazia do dólar se manteve, possibilitando trocas vantajosas com o mundo mesmo quando não eram os norte-americanos a agregar mais valor, e a ameaça existencial do bloco soviético esfarelou-se.
No entanto, o ressurgimento da Rússia, que ao fim não se integrou ao modelo americano (inclusive por negativa dos EUA, diga-se), e especialmente a ascensão chinesa, competindo e em alguns casos superando as capacidades industriais e tecnológicas americanas – como demonstra o recente caso da Inteligência Artificial DeepSeek – não só colocam em xeque a política externa americana praticada nas últimas oito décadas, mas de fato obrigam uma revisão. A questão deixa de ser qual modelo de política externa é capaz de prover mais estabilidade: passa a ser se a estabilidade, ao menos nos moldes dos últimos 80 anos, é possível ou desejável.
A América Latina sob o porrete e o Brasil tateando o labirinto
Se parte desta revisão supõe, para Trump, quebrar os laços para além do Hemisfério Ocidental que não sejam absolutamente favoráveis aos EUA – o caso ucraniano é evidente [2] –, supõe também reforçar os laços de dependência, ainda que por meio da força, com os países do hemisfério. A política externa de Trump se adianta a um conflito inescapável com a China: enquanto os democratas, então representados por Biden, apostavam no consenso como elemento fundamental da hegemonia, Trump responde lembrando da força e da coerção. A aposta dos primeiros, é verdade, poderia assegurar uma transição mais tranquila até o momento de embate com os chineses – mas quando ele chegasse, como estariam as bases da força do império? Daí o desejo de Trump de voltar-se para a América, reforçar tanto quanto possível suas capacidades produtivas próprias e exacerbar seu domínio sobre seu espaço vital. Se há limites muito claros quanto a quão longe Trump efetivamente pode ir a nível interno, eles são muito mais frouxos na política externa: daí a aposta do presidente de usar o segundo como meio para o primeiro.
Mais do que qualquer consideração econômica, ou ainda de saúde pública – o presidente tem apontado à crise de fentanil nos EUA e ao narcotráfico como motivação das tarifas impostas ao México e China –, o que importa para Trump é a posição de poder americano frente a esses países. Muitos analistas têm apontado, com certa razão, que a agressividade americana pode motivar os países da região a acelerar suas parcerias com Rússia, China, e até com o bloco europeu. Não aparecem nestas análises, no entanto, três elementos fundamentais: primeiro, que a aceleração de tais parcerias dificilmente chegaria a tempo de compensar qualquer perda decorrente da guerra tarifária americana, ao passo que quaisquer eventuais benefícios de um abandono dos EUA levariam mais tempo do que os presidentes latino-americanos, especialmente os progressistas, costumam ter à disposição. Se é verdade que Trump não pode se dar ao luxo de combater vários países ao mesmo tempo, também é que pode escolher a dedo aqueles líderes que gostaria de ver no chão no próximo ciclo eleitoral – e nisso as tarifas podem causar grande estrago. Segundo, que mesmo quando os países usarem da reciprocidade, respondendo às tarifas com novas tarifas, como acaba de fazer o Canadá, na prática estarão colaborando para remodelar as relações internacionais nos termos trumpistas, sendo forçados a um certo impulso nacionalista, sem o qual sequer o modelo norte-americano poderia ser alterado. Um mundo em guerra comercial não é um dos efeitos possíveis e indesejados da política externa de Trump; é o fim desta política externa, e um meio para a reorganização do bloco de poder interno, sem o qual, reconheçamos, os EUA tendem à decadência, ao menos como superpotência única. Terceiro, que a centenária perspectiva dos EUA para seu espaço vital inclui porretes, seja na forma de golpes de Estado, pressões, invasões, ou mesmo – para falar da modernidade – sanções e intervenções de outro tipo (uso de soft power, guerra cultural, ciberguerra, manipulação, etc.) Os países que efetivamente estiverem em condições de apostar numa diversificação comercial por meio da China ou Europa e que se disporem a correr os riscos temporais que já mencionei não podem ignorar este fato.
E então chegamos ao Brasil. Além de receber membros da família Bolsonaro em sua posse, Trump fez uma série de declarações mirando o país especificamente: no dia 20, disse que “não precisamos do Brasil”; no dia 27, colocou o Brasil – ao lado da China e da Índia – como um país que “quer nos prejudicar”; no dia 30, mencionou os BRICS diretamente, dizendo: “não há chance de que os Brics substituam o dólar americano no comércio internacional ou em qualquer outro lugar. E qualquer país que tente, deve dizer ‘olá às tarifas e adeus à América’”, ameaçando com tarifas de 100% sobre tais países.
A importância do Brasil para Trump é evidente não só pelo seu tamanho e riqueza, nem só pelo secularmente pretendido (e cada vez menos real) papel de sub-hegemon regional, mas especialmente por tratar-se do país sul-americano que efetivamente é membro fundador do BRICS. Se há um país da região na lista preferencial de alvos, é o Brasil; e as facilidades para o ataque são muitas, a começar pelo fato de que seu governo é fraco e a oposição é ávida.
Sob este terceiro mandato Lula, a política externa brasileira, em parte sob a suposição de que os democratas haviam sido fundamentais no combate ao golpismo doméstico, em parte sob a suposição de que poderiam fazer algo em favor dos democratas e contra o trumpismo, apostou em uma tentativa de acomodação dos interesses norte-americanos, o que incluiu a contenção preventiva não só no continente – afastando-se da Venezuela, por exemplo – mas dentro dos próprios BRICS. O veto à entrada da Venezuela no bloco é exemplo maior: se teve como foco uma punição ao país sul-americano, teve como efeito o atraso no fortalecimento do bloco; ficou de fora um regime com alto nível de estabilidade política e a nação com as maiores reservas de petróleo da Terra e no lugar entraram Bolívia – cuja instabilidade nasce do próprio partido dirigente, o MAS, com a luta desesperada entre evistas e arcistas arrastando todo o país – e Cuba, que poderia esperar se beneficiar da entrada no bloco, mas certamente teria pouco a oferecer quando se trata de fortalecê-lo.
De que valeu esta política de bom serviçal, agora que Trump, como era previsível, é presidente? As tantas reuniões de alto nível com representantes democratas para “salvar a democracia no Brasil”, que ecos terão agora? E, por outro lado, que papel de preponderância pode esperar o Brasil na organização de qualquer resposta regional à violência trumpista se há pouco, de boa vontade, sem ameaças, se ajoelhava frente a Biden? Os que formularam tão genial política de amiguismo com o governo democrata, ignorando que os brasileiros não têm direito a voto nos EUA e que são portanto incapazes de influenciar seu futuro, deveriam ser responsabilizados: não porque ignoraram um evento esperado como a vitória de Trump, mas justamente por terem apostado as fichas da política externa do país no verdadeiramente inesperado – uma vitória democrata. De qualquer forma, a boa política externa não deveria tomar a forma de apostas em jogos sobre os quais não se tem ingerência.
“Não falar baixo com os EUA e alto com a Bolívia” é boa diretriz; mas nos últimos anos melhor teria sido se lembrar de não ser garoto de recados de um a outro. A soberania só se valida como princípio se antes há a decisão de buscar exercê-la. México, com Sheinbaum, Colômbia, com Petro, Honduras, com Xiomara, e Venezuela, com Maduro, parecem em posição de ao menos falar alto com os americanos, se necessário for. A voz brasileira, que deveria ser a de um gigante, se apequenou, e é capaz de hoje gaguejar mesmo frente o Suriname. Ninguém sabe, talvez nem mesmo Trump, até que ponto os EUA estarão dispostos a usar da força, em suas formas várias, para fazer valer seus interesses, e até que ponto ela será usada somente como ameaça para buscá-los. Em um ou outro caso, para enfrentar Trump a mudança necessária aos homens de governo é na fibra de que são feitos, não nos bonés azuis que põem sobre a cabeça em nome de fazer marquetadas.
Publicado em Revista Opera.
Notas:
[1] Embora seja verdade que o governo do democrata Woodrow Wilson (1913-1921) seja considerado o marco fundador da concepção intervencionista, Wilson não conseguiu, embora tenha tentado, aplicar sua política externa no pós-Primeira Guerra. A história americana só o vingaria na Segunda Guerra.
[2] Sobre a questão ucraniana, vale notar que o “melhor resultado” de um fim na guerra, por parte dos EUA, não seria o fim dos gastos para supostamente manter a Europa segura, mas a possibilidade bastante plausível de desunir Rússia e China. Na prática, a insistência em pressionar a Rússia até a guerra jogou os russos no colo dos chineses: um cenário que a política externa norte-americana, durante o último século, tentou obsessivamente evitar. Do lado da Rússia, se esta foi uma necessidade, não deixou de ser amarga: não são poucos os analistas que veem na aproximação com a China um perigo, como é o caso do nada desprezível Sergey Karaganov. Resta lembrar que, embora os países tenham relações próximas hoje, inclusive integrando os BRICS, historicamente tiveram relações tensionadas, mesmo quando ambos os países eram socialistas.