Autoria Ruben Rosenthal, engenheiro metalúrgico, professor aposentado da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), responsável pelo site Chacoalhando, pelo programa Agenda Mundo na TV GGN e TV Chacoalhando.
Nas últimas semanas voltaram a ocorrer grandes manifestações na Geórgia, em protesto contra a votação e aprovação no parlamento, do projeto de lei conhecido como “transparência da influência estrangeira”. A presidente do país, Salome Zurabishvili (independente) foi contrária a lei, mas prevaleceu a posição do parlamento. Agora, ONGs que recebam mais de 20% de seu financiamento a partir do exterior, precisarão declarar a origem das verbas.
Segundo divulgado no The Grayzone, das cerca de 25 mil ONGs registradas no país, uma parte significativa recebe fundos provenientes de agências do setor de inteligência dos Estados Unidos, como USAID (Agência para Desenvolvimento Internacional) e da NED (Dotação Nacional para Democracia), braço da CIA.
O clima político se tornou tenso em Tbilizi, capital do país, com amplas manifestações de rua contra o governo, além de ameaças vindas do exterior, indicando que Europa e Estados Unidos estariam pondo em marcha uma revolução colorida na Geórgia.
Conforme publicado no Político, o primeiro-ministro georgiano acusou um comissário da União Europeia de proferir um aviso ameaçador durante uma conversa: “veja o que ocorreu com [o líder eslovaco Robert] Fico; você deveria ter muito cuidado”. Robert Fico, primeiro-ministro eslovaco, pró-Rússia, foi gravemente ferido em atentado em 15 de maio deste ano.
Como parte da pressão, congressistas norte-americanos estão tentando impor sanções aos membros do partido Sonho Georgiano (Georgian Dream), com acusações de alinhamento com a Rússia, onde foi aprovada, em 2012, a lei de Agentes Estrangeiros.
Anteriormente, em fevereiro de 2023, o governo georgiano já encaminhara o projeto de transparência das ONGs, mas voltou atrás em face dos protestos violentos que irromperam na ocasião.
A Geórgia no xadrez da geopolítica
Após o desmantelamento da União Soviética, durante a presidência de Eduard Shevardnadze na Georgia, foi permitido o estabelecimento de ONGs financiadas do exterior, sem que houvesse um maior controle. O objetivo declarado de muitas destas organizações não governamentais era de promover os “valores democráticos e liberais”, o que foi feito, por exemplo, através da arregimentação de setores da sociedade, como jornalistas, juízes e outros. Shevardnadze acabou se tornando alvo desta nova estrutura, tendo sido derrubado em 2003 pela Revolução das Rosas.
O poder ficou com Mikheil Saakasvili, que chegou a ser indicado por Hillary Clinton para o prêmio Nobel da Paz, pela defesa “dos valores universais de democracia, liberdade individual e direitos civis”.
Durante o mandato presidencial de Saakasvili, a Geórgia criou um forte exército com apoio dos EUA, enviando contingentes para as guerras do Iraque e do Afeganistão. No Iraque, chegou a manter 2.300 militares, enquanto que no Afeganistão, o efetivo alcançou 1.200 combatentes.
Mas o grande interesse de Saakasvili era recuperar a Abecásia e a Ossétia do Sul, repúblicas autônomas que se separaram pouco após a Geórgia se tornar independente da União Soviética.
A Ossétia do Sul se separou da Geórgia através de uma guerra em 1991/92, em que ocorreram milhares de mortes. A população é de etnia diversa da georgiana, e adota a língua farsi. A Abecásia venceu a guerra de secessão contra a Geórgia em 1992/93.
Como resultado dos conflitos, um elevado número de georgianos foram deslocados em um processo de limpeza étnica, segundo artigo publicado no think tank russo, Valdai Club. Nele, um analista do britânico Instituto Internacional para Estudos Estratégicos (IISS, na sigla em inglês) defende a reincorporação destas regiões à Geórgia, mas passando a usufruir de autonomia. Entretanto, Tbilisi havia se recusado anteriormente a discutir a concessão de autonomia à Abecásia e Ossétia do Sul, o que acabou levando à guerra de 2008 e intervenção da Rússia, conforme relata o analista russo A. Sushentsov, no Valdai Club.
Saakasvili quis retomar o controle das regiões separatistas, movido pelo comprometimento da OTAN na Cúpula de Bucareste (abril de 2008) em aceitar a Geórgia (e a Ucrânia) na Organização. Em agosto, Saakasvili promoveu uma guerra, que durou apenas 5 dias, com a intervenção de tropas russas. O processo levou ao reconhecimento pela Rússia, da independência das duas regiões, e à assinatura de um tratado de segurança com ambas.
Tbilisi passou a ver a filiação à OTAN, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, como uma garantia de segurança contra o poderoso vizinho do norte. No entanto, os membros europeus da OTAN, e mesmo os Estados Unidos, passaram a se opor à integração da Geórgia na Organização.
Eles estavam cientes de que a Geórgia tentara atrair o Ocidente para um conflito militar com a Rússia. Como também constataram a determinação da Rússia de considerar como ameaça à sua segurança nacional, o avanço da infraestrutura militar da OTAN até suas fronteiras.
No entanto, mais recentemente, os europeus não mantiveram este posicionamento no caso da Ucrânia, ao defender novamente a admissão do país na estrutura da OTAN. Neste novo cenário, com o conflito OTAN-Rússia na Ucrânia, a Geórgia seria provavelmente convidada a ingressar na OTAN, como parte da política de confrontação com a Rússia. No momento, com o Movimento Nacional Unido, partido de Saakasvili, fora do poder, esta perspectiva fica dificultada, se não inviabilizada.
Em 2013, o partido do Sonho Georgiano chegou à presidência do país, derrotando o MNU. Fundado em 2012 por um bilionário oligarca, o partido vem ganhando desde então as eleições para o parlamento. No poder, o Sonho Georgiano se deu conta de que deveria buscar uma posição equilibrada, para não tornar o país, refém da confrontação Rússia-OTAN.
Por um lado, o governo procura fortalecer os laços com o Ocidente, e, por outro, busca manter uma coexistência pacífica com a Rússia. Após a invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022, a Geórgia se recusou a fornecer armas à Ucrânia, para não cruzar uma linha vermelha para Moscou. As autoridades georgianas acusam a Ucrânia e o Ocidente de tentar envolver a Geórgia em um conflito armado com a Rússia, abrindo uma segunda frente na guerra.
A noção do Georgian Dream como sendo um partido pró-Rússia tornou-se um estereótipo persistente, impulsionado pela oposição georgiana, pela mídia global e por muitos analistas. O fundador do partido – o bilionário Bidzina Ivanishvili, que fez fortuna na Rússia – também recebe acusações de manter posições pró-Kremlin.
A versão de que o partido Georgian Dream é simpatizante da Rússia foi rebatida em relatório de 2023 do “insuspeito” Carnegie Endowment for International Peace, que, no entanto, foi recentemente removido do site do think tank. “É difícil ver algo pró-Moscou nas ações do Georgian Dream nos últimos anos”, segundo consta no relatório, que foi publicado após os protestos de massa que se seguiram à tentativa do governo de aprovar em 2023, a lei de transparência dos financiamentos das ONGs.
Consta ainda do relatório: “Desde a invasão da Geórgia pela Rússia em 2008, Tbilisi não tem relações diplomáticas com a Rússia, nem voos diretos. O governo condenou a agressão russa, apoia a integridade territorial da Ucrânia e vota a favor da Ucrânia em resoluções da ONU”. Também sob o governo do partido Sonho Georgiano, foi inaugurado em 2015 um centro de treinamento da OTAN, e em março de 2022, o país solicitou a adesão à União Europeia.
Entretanto, a UE não concedeu o status de candidato à Geórgia, ao contrário do que foi decidido em relação à Ucrânia e Moldova. A atitude da UE foi interpretada na ocasião como uma retaliação à lei de ‘transparência da influência estrangeira’ que o governo tentava aprovar. Foi exatamente a prevalência dessa narrativa que deu origem aos protestos de 2023 já mencionados.
Legião Georgiana, mercenários anti-Rússia
A Legião Georgiana foi fundada em 2014 por Mamuka Mamulashvili, veterano do conflito Geórgia-Abecásia, da primeira Guerra Chechena e da Guerra Russo-Georgiana de 2008. Mamulashvili foi conselheiro militar de Saakasvili, e esteve diretamente envolvido na organização do incidente da Praça de Maidan em 2014, na capital ucraniana, em que franco-atiradores dispararam contra a multidão, causando diversas mortes. A partir daí, os protestos escalonaram e levaram à queda do presidente ucraniano, Victor Yanukovych, e à formação de governos anti-Rússia em Kiev.
Após o “golpe” de Maidan ou Euromaidan, como ficou conhecido, Saakasvili foi convidado a assumir como governador de Odessa, na Ucrânia, na presidência de Petro Poroshenko. Saakasvili incentivou o envolvimento de mais georgianos nos conflitos na Ucrânia.
Retornando à Geórgia em 2021, Saakasvili foi detido pela acusação de abuso do poder, ao reprimir violentamente seus opositores. Em uma tentativa de tirá-lo da prisão, foi orquestrado um golpe nos moldes do Euromaidan, com a participação de Mamulashvili e de membros da Legião Georgiana, conforme relato no The Grayzone. Um atentado a bomba seria cometido em Tbilisi, para atribuir a responsabilidade ao governo, e com isso gerar protestos violentos nas ruas, que levariam à desestabilização do governo. O atentado deveria ocorrer no último trimestre de 2023, mas não se materializou.
Ossétia do Sul poderá se unir à Rússia
A independência da Abecásia e da Ossétia do Sul ainda é uma questão muito sensível para os ucranianos. Poucos países reconheceram as novas repúblicas, que mantém vínculos muito estreitos com a Rússia. Em março deste ano, foi divulgado pela Reuters que o governo da Ossétia do Sul manteve discussões com Moscou, visando uma eventual união à Rússia. Em agosto de 2023, o ex-presidente russo Dmitry Medvedev já havia declarado que as duas regiões separatistas poderiam ser anexadas pela Rússia, também segundo a Reuters.
Se esta união for concretizada, o efeito será de aumentar o sentimento anti-russo na Geórgia, com uma ajudinha, é claro, dos “agentes estrangeiros” que atuam no país. A insatisfação popular poderá se refletir nas eleições de outubro de 2024, quando o partido do Sonho Georgiano tentará conquistar pela quarta vez, a vitória nas eleições parlamentares.
No caso da volta ao poder do Movimento Nacional Unido, atualmente na oposição, o país irá provavelmente promover uma política externa de confrontação com a Rússia. Se levada ao extremo, a tragédia da Ucrânia poderá se repetir no Cáucaso do Sul.
Publicado em Chacoalhando.