Autoria Reynaldo Aragon Gonçalves e Wanderley Anchieta.
À medida que o Brasil se posiciona na cúpula do BRICS de 2024, o cenário geopolítico se torna um campo de batalha para narrativas antagônicas. Enquanto think tanks e mídias ocidentais tentam marginalizar a cooperação entre países do Sul Global, o Brasil se vê no epicentro de uma estratégia de criminalização que busca deslegitimar nações como Venezuela e Cuba.
Neste artigo, exploramos como essa dinâmica revela uma operação psicológica orquestrada para reforçar a hegemonia ocidental e o desafio de construir uma narrativa soberana no contexto atual.
Desde sua fundação, os BRICS têm sido alvo de uma campanha sistemática de marginalização conduzida por think tanks, fundações e agências ocidentais e mídias tradicionais. O temor de que essa coalizão emergente possa ameaçar a hegemonia econômica dos Estados Unidos e o dólar como moeda central impulsiona a construção de narrativas negativas sobre o grupo e seus parceiros no Sul Global.
Esses discursos, promovidos por instituições como o Atlantic Council, Carnegie Endowment e National Endowment for Democracy (NED), entre um ecossistema vasto de outras instituições, não apenas reforçam a falsa dicotomia entre o progresso ocidental e a “ameaça externa”, mas também operam como ferramentas de guerra cultural e operações psicológicas (psyops), modelando a percepção pública e influenciando políticas globais.
As guerras e operações psicológicas (psyops) são estratégias utilizadas para influenciar percepções e comportamentos, frequentemente visando deslegitimar adversários e controlar narrativas. No contexto das tensões geopolíticas atuais, essas operações são empregadas para criminalizar os BRICS e demais iniciativas de fora do eixo ocidental, apresentando-os como uma ameaça à ordem mundial, criando uma imagem negativa perante a opinião pública, assim como em setores da economia, que visa justificar intervenções e isolar essas nações no cenário internacional.
Ao moldar a opinião pública por meio de desinformação e campanhas midiáticas, essas instituições buscam reforçar a hegemonia ocidental e deslegitimar iniciativas de cooperação entre os países do Sul Global, por exemplo. O bloco BRICS surgiu visando reestruturar as relações internacionais, promovendo uma governança mais equilibrada e descentralizada, algo que desafia a arquitetura do poder estabelecida desde a Segunda Guerra Mundial.
Além de buscar alternativas ao domínio das instituições financeiras tradicionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, o bloco propõe a diversificação das moedas usadas no comércio global, questionando a primazia do dólar. Essa agenda desperta reações intensas entre as elites ocidentais, que enxergam o grupo como uma ameaça ao status quo, temendo que uma ordem multipolar comprometa tanto o poder financeiro dos EUA quanto a influência diplomática do Ocidente.
Think tanks como o Atlantic Council e fundações como a NED, entre muitos outros, passaram a produzir uma vasta quantidade de relatórios como “The BRICS and the Future of Global Governance” de 2012, The Rise of BRICS: Implications for U.S. Interests de 2013 e Are the BRICS a Threat to the US? de 2023, são exemplos destas análises que retratam o BRICS como uma coalizão autoritária e antidemocrática.
Essas publicações, embora travestidas de estudos imparciais, funcionam como apitos de cachorro (dog whistles) para um ecossistema midiático que amplifica essas narrativas. Esses relatórios são rapidamente absorvidos pelas grandes agências de notícias do Ocidente, como Reuters, CNN, The New York Times e BBC, que os utilizam como base para pautar coberturas enviesadas sobre o BRICS e os países do Sul Global.
Think tanks são instituições que, embora frequentemente apresentem suas análises como baseadas em ciência e dados rigorosos, muitas vezes utilizam métodos questionáveis para corroborar interesses não científicos ou corporativos. A produção de relatórios e estudos por essas entidades passa raramente por processos de revisão por pares, o que compromete sua legitimidade e validade científica.
Em vez de promover um debate informado e fundamentado, essas instituições tendem a veicular narrativas que servem a agendas políticas específicas, minando a confiança no discurso acadêmico e na busca por soluções justas e equitativas para os problemas globais. Essa falta de rigor metodológico contribui para a construção de um consenso artificial que marginaliza iniciativas como o BRICS, colocando em xeque a integridade da pesquisa e a autenticidade das informações disseminadas.
O discurso, inicialmente construído por essas instituições, é replicado por portais, jornais e redes de televisão ao redor do mundo, incluindo a mídia brasileira, alimentando um ciclo contínuo de criminalização e desprestígio das iniciativas soberanistas e autônomas desses países. Os veículos da mídia mainstream ocidental atuam em sinergia com think tanks e fundações, como o Atlantic Council e o NED, que funcionam como uma espécie de incubadora para as narrativas que serão reverberadas pela mídia tradicional.
Essa relação simbiótica se manifesta na cobertura seletiva de eventos e na amplificação de discursos que deslegitimam iniciativas como o BRICS, contribuindo para a construção de uma visão polarizada do mundo. Ao adotar essas perspectivas, a mídia não apenas informa, mas também molda a opinião pública, consolidando uma agenda que favorece os interesses geopolíticos do Ocidente.
Dessa forma, o ethos dos BRICS, que defendem uma governança multipolar e um caminho independente para o desenvolvimento dos povos do Sul Global, é sistematicamente distorcido e apresentado como uma ameaça à ordem liberal, criando um clima de perseguição constante ao bloco e seus valores.
Os discursos sugerem que o bloco seria não apenas uma ameaça econômica, mas também ideológica, posicionando-o como antagonista da ordem liberal ocidental. Essa propaganda é disseminada em múltiplos canais, alimentando a mídia corporativa e moldando a opinião pública para justificar pressões diplomáticas, sanções econômicas e isolamento político.
Assim, a construção dessa polarização – Ocidente versus BRICS/Sul Global – reflete uma disputa inevitável pela manutenção do seu poder hegemônico, mas uma narrativa artificial que favorece os interesses das potências ocidentais. Por meio de operações psicológicas sofisticadas, essas organizações buscam manter a hegemonia do Ocidente enquanto deslegitimam qualquer tentativa de reorganização da ordem mundial.
O Discurso da Ameaça do Sul Global e dos BRICS
No atual cenário global, marcado por instabilidade política e econômica, a guerra informacional tornou-se uma ferramenta central de disputa entre potências. Em um contexto de Sociedade 4.0 — caracterizada pela interconexão digital, automação e fluxo massivo de dados —, narrativas estratégicas são moldadas para influenciar percepções públicas e consolidar interesses políticos e econômicos.
O BRICS, como bloco emergente que propõe alternativas à hegemonia ocidental, desperta reações intensas nesse campo de batalha informacional. Ameaçando o status quo financeiro, político e geopolítico liderado pelo Ocidente, o BRICS torna-se alvo de campanhas de desinformação e operações psicológicas que buscam deslegitimá-lo. Essas ofensivas, conduzidas por think tanks, governos e grandes veículos de mídia, alimentam a polarização, retratando o bloco e seus membros como ameaças à “ordem liberal” e justificando sanções e pressões econômicas.
Desde o surgimento do BRICS em junho 2009, as reações do Ocidente foram marcadas por agressividade, refletindo a resistência à possibilidade de uma ordem global multipolar, lideram essa ofensiva ideológica e geopolítica, sempre instrumentalizadas por instituições de Estado como Central Intelligence Agency CIA, National Security Agency (NSA), U.S. Agency for International Development (USAID) entre outros, assim como instituições privadas dos países centrais, em especial dos EUA.
Embora essas instituições se apresentem como defensoras da democracia, dos direitos humanos e da liberdade econômica, suas práticas revelam outra faceta: uma intervenção ativa em processos políticos e econômicos globais, com o objetivo de proteger a hegemonia do Ocidente e marginalizar qualquer projeto alternativo, como o promovido pelo BRICS e por outras nações do Sul Global.
A NED, por exemplo, foi criada nos anos 1980 com a missão declarada de promover a democracia ao redor do mundo. No entanto, desde sua fundação, a instituição tem sido acusada de interferir em processos políticos internos de vários países, financiando movimentos alinhados aos interesses dos Estados Unidos.
De forma semelhante, o Atlantic Council tem desempenhado um papel fundamental na construção de narrativas que associam a ascensão de países não ocidentais, como China e Rússia, a ameaças globais, promovendo a ideia de que a única alternativa legítima é a manutenção da ordem liberal liderada pelos EUA.
A Heritage Foundation e a Carnegie Endowment também se inserem nesse ecossistema, cada uma com abordagens distintas – conservadora e liberal, respectivamente – mas convergindo na defesa da hegemonia ocidental. Tanto os conservadores quanto os neoliberais enxergam qualquer projeto que promova soberania econômica e autonomia política como uma ameaça aos seus interesses globais, atuando de maneira coordenada para desacreditar e desestabilizar essas iniciativas.
Além das influências internacionais, no Brasil, think tanks ultraliberais também desempenham um papel relevante na disseminação de narrativas alinhadas ao Ocidente e contrárias ao BRICS. Instituições como o Instituto Millenium[1], o Centro de Liderança Pública (CLP), a Fundação Lemann e o Livres reforçam o discurso de que a aproximação com o bloco representa um risco para o país, defendendo uma maior adesão ao modelo econômico e geopolítico liderado pelos EUA e pela Europa.
O Instituto Millenium, por exemplo, promove desde 2005 uma visão de mercado livre que se opõe a projetos de desenvolvimento autônomo e soberano, característicos do ethos do BRICS. Sua retórica sugere que o Brasil deveria se afastar de alianças com China e Rússia e aprofundar laços com as potências ocidentais, sob a justificativa de modernização econômica.
De forma semelhante, o CLP, ao capacitar lideranças e influenciar políticas públicas, reproduz o discurso neoliberal e desconfia de arranjos multipolares que escapem à órbita de influência ocidental. Embora voltada principalmente para a educação, a Fundação Lemann também exerce um papel relevante nesse contexto. Com laços estreitos com instituições internacionais como o Atlantic Council e a Carnegie Endowment, a fundação participa de discussões globais que promovem uma visão tecnocrática e favorável ao alinhamento do Brasil aos interesses das economias centrais.
Por meio de parcerias e programas de formação, seus projetos reforçam a narrativa de que iniciativas de cooperação com o Sul Global são secundárias ou inviáveis. O Livres[2], por sua vez, adota uma postura ultraliberal que critica não apenas a política econômica brasileira, mas também a política externa ativa e autônoma que busca estreitar relações com o BRICS.
A organização apresenta frequentemente a aproximação com potências emergentes como arriscada, sustentando que o caminho mais seguro para o Brasil é a adesão plena ao mercado global liderado pelo Ocidente. Esses think tanks operam em sinergia com fundações internacionais e ajudam a moldar o debate público e a opinião da elite econômica e política brasileira. Suas publicações, eventos e colaborações internacionais reforçam uma narrativa de que os BRICS representam uma ameaça à estabilidade global e aos interesses do Brasil, alinhando-se ao esforço mais amplo de marginalização do bloco e de promoção de uma ordem unipolar.
Dessa forma, esses atores locais funcionam como peças-chave em uma rede mais ampla de think tanks, governos e mídia ocidentais, replicando as mesmas narrativas e sustentando a hegemonia do Ocidente. Neste contexto, a Atlas Network emerge como um influente ecossistema de think tanks que atua globalmente na promoção de ideais ultraliberais, com forte ênfase na deslegitimação de iniciativas como o BRICS.
Ao financiar e coordenar instituições ao redor do mundo, a Atlas Network contribui para a criminalização do bloco, fomentando narrativas que o apresentam como uma ameaça à ordem liberal e aos interesses ocidentais. Além da produção de relatórios, essas instituições moldam o discurso internacional e influenciam políticas públicas por meio de conferências, seminários e lobby político, nos quais participam autoridades, empresários e lideranças de opinião.
Essas plataformas se tornam espaços para legitimar narrativas de confronto, promovendo a imagem de que o BRICS e o Sul Global representam uma ameaça à estabilidade mundial. Os estudos produzidos por esses think tanks são amplamente disseminados na mídia ocidental e acabam pautando governos e políticas externas, incluindo no Brasil, que frequentemente replica o discurso de desconfiança e criminalização do bloco.
Operações Psicológicas: A Manipulação da Percepção Global Sobre do BRICS
O resultado desse esforço conjunto é uma operação psicológica (psyop) sofisticada e sistemática que sustenta uma polarização artificial entre o Ocidente e o BRICS. De um lado, o Ocidente se posiciona como o guardião da ordem global, da democracia e dos direitos humanos; de outro, os países do BRICS são rotulados como autoritários, instáveis ou ameaçadores, como nos casos de China, Rússia e Irã, os dois últimos rotulados como sendo do “eixo do mal”.
Essa narrativa se constrói não por meio de uma ação isolada, mas por um ecossistema coordenado que envolve instituições diversas privadas, mídia corporativa e governos, todos atuando de forma orquestrada para minar qualquer projeto alternativo à hegemonia ocidental. As técnicas mais comuns de psyops incluem campanhas de desinformação, manipulação seletiva de dados e uso de narrativas alarmistas.
Um exemplo claro disso são as análises publicadas pelo Atlantic Council, que frequentemente caracterizam o BRICS como uma coalizão que ameaça “desestabilizar a ordem democrática global”, associando os países do bloco a regimes autoritários. Essa associação busca criar uma imagem negativa que molda o debate público e legitima a desconfiança contra o bloco, mesmo em países que têm interesses concretos na cooperação Sul-Sul.
Outra técnica utilizada é a amplificação coordenada de relatórios e estudos por meio de mídias tradicionais e redes sociais. Fundações como a NED (National Endowment for Democracy) produzem relatórios que rotulam o BRICS como uma força desestabilizadora e autoritária, enquanto esses conteúdos são repercutidos por grandes veículos de imprensa, como CNN, The New York Times, e Financial Times.
Essa narrativa também é reproduzida pela mídia brasileira, que adota o enquadramento ocidental e apresenta as iniciativas do BRICS de maneira enviesada, reforçando a percepção de ameaça ao “bom funcionamento” da ordem global. O uso de think tanks conservadores e neoliberais também é estratégico.
Instituições como a Heritage Foundation e a Rand Corporation, publicam estudos que reforçam a necessidade de os EUA e seus aliados manterem a primazia econômica e militar. Esses relatórios influenciam diretamente formuladores de políticas públicas e governos, moldando decisões internacionais e fomentando a desconfiança em relação ao BRICS.
Um exemplo concreto foi o tratamento dado ao Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) do BRICS, apresentado em diversos estudos como um instrumento de influência chinesa, embora tenha sido concebido como uma alternativa legítima ao sistema financeiro dominado pelo FMI e pelo Banco Mundial. Além disso, campanhas de medo e suspeição são utilizadas para fortalecer a imagem de um BRICS hostil ao Ocidente.
Exemplos incluem acusações de espionagem cibernética por parte da China, Irã e da Rússia, associação da política energética do bloco com a insegurança energética global, e a acusação de que o BRICS apoia regimes autoritários na África e na América Latina. Essas campanhas utilizam uma linguagem sutil, mas eficaz, para criar uma percepção pública de que qualquer aproximação com o bloco é um risco econômico ou diplomático.
Essas operações não se limitam ao campo da política e da economia, mas avançam também para o campo ideológico e cultural. A promoção de valores neoliberais e a deslegitimação de modelos alternativos de desenvolvimento buscam enfraquecer as bases de cooperação do Sul Global e criar divisões internas nos países que integram o BRICS. Assim, qualquer tentativa de soberania econômica, tecnológica ou geopolítica por parte desses países é rapidamente rotulada como “ameaça à estabilidade global”.
Esse ecossistema coordenado de psyops revela que a guerra cultural e ideológica conduzida pelo Ocidente não se dá por força militar explícita, mas pela manipulação da percepção pública, controle narrativo e criminalização de projetos autônomos. Dessa forma, a narrativa hegemônica é constantemente reforçada, garantindo que alternativas multipolares como o BRICS permaneçam marginalizadas no debate público global.
As organizações internacionais do Ocidente constroem e disseminam uma narrativa de ameaça em torno do BRICS e do Sul Global, apresentando essas nações como riscos à “ordem liberal” liderada pelos EUA e seus aliados.Esse discurso é moldado com o objetivo de manter o status quo geopolítico e econômico, criminalizando projetos que defendam soberania nacional e desenvolvimento independente.
A narrativa da ameaça é central para sustentar a hegemonia ocidental, justificando a necessidade de intervenções políticas, pressões econômicas e campanhas de desinformação. Essa narrativa é alimentada pela demonização de dois dos principais membros do BRICS, China e Rússia, apresentadas como potências revisionistas que desafiam o poder hegemônico dos EUA. O Brasil, especialmente durante governos progressistas, também é alvo desse discurso. Ao tentar promover um desenvolvimento soberano e alianças com o Sul Global, o país é frequentemente enquadrado como um “desalinhado” com os interesses do Ocidente.
Governos que investem em políticas de desenvolvimento independente, como no Brasil sob Luiz Inácio Lula da Silva, são frequentemente apresentados pela mídia e por essas instituições como populistas, ineficientes ou inclinados ao autoritarismo. A narrativa de ameaça também é reforçada por meio da pressão diplomática e econômica. A mídia ocidental e relatórios desses think tanks vendem a ideia de que alianças fora dos padrões ocidentais são arriscadas, desincentivando a aproximação entre países do Sul Global.
Assim, qualquer tentativa de integração fora da órbita do Ocidente é vista como uma ameaça à ordem internacional, reforçando a dependência econômica e política desses países em relação aos EUA e à Europa.
A Falsa Polarização: Ocidente vs Sul Global
As campanhas de psyops e desinformação são frequentemente utilizadas para dividir o campo do Sul Global e impedir a consolidação de blocos alternativos como o BRICS. Exemplos disso incluem a campanha de desinformação sobre a infraestrutura digital chinesa, como a Huawei[3], rotulada como uma ameaça à segurança nacional em diversos países.
Outro exemplo concreto é a campanha de demonização da Rússia, que, além de ser apresentada como uma ameaça militar, é constantemente acusada de interferir em eleições e crises políticas ao redor do mundo. Essa estratégia é parte de uma guerra informacional que visa isolar diplomaticamente a Rússia e, por extensão, enfraquecer o BRICS como um todo.
A criminalização de projetos soberanos é uma das táticas mais recorrentes. Quando governos do Sul Global, como o Brasil, a Índia ou a África do Sul, defendem políticas econômicas autônomas, são frequentemente alvo de pressões internacionais e campanhas de descrédito. As instituições ocidentais promovem a ideia de que esses projetos representam uma ameaça à estabilidade regional e aos mercados globais, restringindo a margem de manobra desses países e promovendo a ideia de que somente alianças com o Ocidente garantem progresso e segurança.
Portanto, o discurso da ameaça em torno do BRICS e do Sul Global não é apenas retórico, mas faz parte de uma estratégia deliberada de guerra cultural e operações psicológicas. Think tanks, fundações e mídia corporativa trabalham em sintonia para garantir que qualquer alternativa à ordem liberal seja percebida como ilegítima ou perigosa. Ao manter o controle sobre a narrativa global, essas instituições bloqueiam o surgimento de modelos alternativos de cooperação e desenvolvimento, preservando a hegemonia ocidental.
É importante destacar que o Sul Global não busca antagonismo, mas alternativas à hegemonia ocidental. Na verdade, países como Brasil, China, Índia e África do Sul têm se engajado em fóruns multilaterais e tentativas de construir uma nova ordem econômica que priorize suas necessidades e interesses, sem necessariamente se opor ao Ocidente. A polarização promovida por instituições ocidentais é, portanto, uma construção artificial, utilizada como justificativa para intervenções políticas, pressões econômicas e sanções que visam neutralizar qualquer projeto que desafie a hegemonia global.
Esse tipo de retórica desumaniza os países do Sul Global, reduzindo-os a meras ameaças, enquanto ignora suas legítimas aspirações por desenvolvimento e autonomia. Casos concretos ilustram essa dinâmica de polarização e manipulação. Por exemplo, durante a crise do petróleo, think tanks ocidentais e veículos de comunicação propagaram a ideia de que as ações dos membros do BRICS eram responsáveis pela volatilidade dos preços, sem considerar os fatores globais que realmente influenciavam o mercado.
Além disso, em contextos eleitorais, como nas eleições na África do Sul, campanhas de desinformação foram lançadas para sugerir que o apoio ao BRICS equivalia a um alinhamento com regimes autoritários, uma narrativa que se replicou em várias partes do mundo. Essas campanhas são frequentemente apoiadas por estudos e relatórios que legitimam a pressão econômica e política sobre os países do BRICS, criando um ciclo vicioso de desinformação e intervenção que busca manter a hegemonia ocidental.
Brasil no BRICS: O Papel do Brasil na Reorganização das Relações Internacionais
O Brasil, como um dos membros fundadores do BRICS, desempenha um papel crucial na tentativa de reorganizar as relações internacionais e desafiar a hegemonia ocidental. A partir de sua liderança, o Brasil tem buscado promover uma agenda que prioriza a soberania e o desenvolvimento autônomo, destacando a importância de um novo paradigma que respeite as diversidades e aspirações dos países do Sul Global.
No entanto, essa postura tem gerado reações negativas das elites ocidentais, que veem o fortalecimento do BRICS como uma ameaça aos seus interesses econômicos e políticos. A mídia mainstream, muitas vezes alinhada com essas elites, têm contribuído para a construção de narrativas que criminalizam o Brasil, distorcendo suas ações e intenções no cenário internacional. A cobertura da mídia sobre o BRICS e suas iniciativas é frequentemente marcada por uma perspectiva negativa, enfatizando supostas falta de democracia ou desrespeito aos direitos humanos nos países membros.
Essa abordagem não apenas marginaliza as vozes do Sul Global, mas também promove uma narrativa que legitima a intervenção ocidental, distorcendo a verdadeira natureza das relações e cooperações que estão sendo construídas. Assim, o Brasil se vê, por um lado, como um ator importante na formação de um novo bloco de poder e, por outro, como alvo das operações de desinformação que buscam desacreditar seu papel e sua liderança.
Neste momento crucial em que ocorre a cúpula do BRICS de 2024, a mídia nacional tem adotado uma postura cada vez mais crítica em relação ao bloco, especialmente no que tange à posição do Brasil e à inclusão de países como Venezuela e Cuba. Artigos e editoriais têm sido veiculados com o intuito de afastar o Brasil do BRICS e de criminalizar esses países, que são frequentemente retratados como exemplos de regimes autoritários que ameaçam a estabilidade e a segurança da América Latina.
Em um editorial recente do G1[4], a cobertura enfatiza a necessidade de “definir critérios claros” para a participação de novos países no BRICS, insinuando que a inclusão de nações como Venezuela e Cuba não é apenas indesejável, mas potencialmente danosa ao prestígio e à imagem do Brasil no cenário internacional.
Essa narrativa é reforçada pela BBC[5], que destaca as preocupações em torno do apoio brasileiro a governos percebidos como ditatoriais, insinuando que tal aliança poderia comprometer a credibilidade do Brasil frente à comunidade internacional. Essa abordagem midiática não apenas deslegitima a atuação do Brasil dentro do BRICS, mas também busca construir uma percepção de que as cooperações com países do Sul Global, particularmente aqueles que desafiam a hegemonia ocidental, são riscos à democracia e ao desenvolvimento.
Essa estratégia de criminalização é uma tentativa clara de polarizar a opinião pública, sugerindo que o fortalecimento do BRICS e a presença de nações como Venezuela e Cuba representam uma ameaça à ordem liberal estabelecida. Através de uma cobertura tendenciosa e alarmista, a mídia nacional alimenta uma narrativa que visa não só desacreditar os valores e as aspirações dos países do Sul Global, mas também assegurar que a agenda ocidental permaneça dominante nas discussões sobre geopolítica e desenvolvimento.
Dessa forma, a cúpula do BRICS se torna não apenas um evento de cooperação internacional, mas também um campo de batalha discursivo onde a luta pela narrativa hegemônica se intensifica. A afirmação de que a entrada da Venezuela no BRICS não convém aos interesses do Brasil levanta uma dicotomia interessante sobre a obrigação moral e ideológica de apoiar um país vizinho que enfrenta profundas crises políticas e econômicas.
Enquanto alguns argumentam que a Venezuela representa uma ameaça à estabilidade da região e aos interesses brasileiros, outros sustentam que, em um mundo multipolar, é imperativo que o Brasil assuma uma postura solidária em relação aos seus parceiros do Sul Global, independentemente das divergências ideológicas.
Por um lado, a perspectiva de que a Venezuela sempre foi parte da esfera de influência dos Estados Unidos, pela sua proximidade geográfica, sugere que o Brasil deveria se afastar de um país que poderia ser visto como um agente desestabilizador na geopolítica sul-americana. Essa visão pragmática aponta para a necessidade de o Brasil priorizar suas relações com países que, historicamente, têm compartilhado uma aliança estratégica, como a Argentina.
No entanto, essa lógica pode simplificar uma realidade complexa, onde as condições de vida e as aspirações do povo venezuelano deveriam ser consideradas ao oferecer oportunidades de desenvolvimento dentro do BRICS e com isso não ficar refém das sanções dos EUA. Por outro lado, a obrigação moral e ideológica de apoiar a Venezuela pode ser vista como um imperativo ético em tempos em que a solidariedade entre nações do Sul Global se torna crucial para contrabalançar a hegemonia ocidental.
Essa perspectiva argumenta que o Brasil, como uma potência emergente, tem o dever de apoiar nações que enfrentam sanções e pressões externas, promovendo uma narrativa de resistência e cooperação em vez de uma divisão baseada em interesses geopolíticos. Assim, a reflexão sobre essa dicotomia leva à conclusão de que a política externa brasileira deve encontrar um equilíbrio entre os interesses pragmáticos e as responsabilidades éticas.
A questão não é apenas se a Venezuela deve ou não ser incluída no BRICS, mas como o Brasil pode liderar uma coalizão que busca não apenas a estabilidade geopolítica, mas também a justiça social e o desenvolvimento sustentável para todos os povos do Sul Global. Essa abordagem não apenas fortalece a posição do Brasil como um ator global responsável, mas também contribui para a construção de um mundo mais justo, onde a colaboração supera a polarização.
O discurso de marginalização do Sul Global e dos BRICS é uma construção estratégica liderada pelas elites ocidentais que, ao longo do tempo, têm sistematicamente reforçado a narrativa de que a cooperação entre esses países representa uma ameaça à ordem liberal. Esse esforço conjunto não só distorce a realidade, mas também desumaniza nações inteiras, reduzindo suas aspirações legítimas a meras ameaças à estabilidade global.
Ao expor essa dinâmica, fica claro que a luta contra essas narrativas hegemônicas é fundamental para a defesa da soberania dos países do Sul Global, e o Brasil, como membro do BRICS, tem um papel central nesse processo. É imperativo que o Sul Global se prepare para combater essas operações psicológicas e construa uma narrativa independente e soberana, que reflita suas realidades e aspirações.
Isso envolve não apenas uma maior conscientização sobre as táticas de desinformação e marginalização, mas também a promoção de uma cooperação que transcenda as divisões artificiais impostas pelas elites ocidentais. Ao fazer isso, os países do Sul Global podem reivindicar seu espaço no cenário internacional de forma digna e autêntica.
É fundamental que se combata as narrativas hegemônicas e se fomente a cooperação global fora da lógica de antagonismo fabricado. Em um mundo cada vez mais interconectado, a colaboração entre os países do Sul Global pode oferecer alternativas viáveis ao modelo ocidental, promovendo um futuro mais justo e equilibrado. Que esta reflexão sirva como um convite à ação, inspirando líderes, acadêmicos e cidadãos a unirem forças na construção de um novo paradigma que respeite as diferenças e busque a justiça global.
Reynaldo Aragon Gonçalves é jornalista, Coordenador Executivo da Rede Conecta de inteligência Artificial e Educação Científica e Midiática, é membro pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI).
Wanderley Anchieta é pesquisador de Pós-Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PPGCOM-UFF), membro do (NEECCC – INCT DSI) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT-DSI).
[2] Livres | Soluções liberais para o Brasil | Livres
[3] A guerra dos Estados Unidos contra a Huawei se aproxima do fim
[5] Como Rússia está usando Brics e reunião em Kazan para reforçar sua posição ‘anti-Ocidente’
Publicado em Jornal GGN.