Autoria Wilson Ferreira, jornalista, editor do Cinegnose, professor, escritor e pesquisador em Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. É Mestre em Comunicação Contemporânea (Análises em Imagem e Som), doutor em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP.
Em defesa de Pablo Marçal: ponham ele na conta da grande mídia
Se a lei eleitoral desobriga à grande mídia convidar Pablo Marçal, por que insiste em colocá-lo nos debates? Mesmo com os recorrentes problemas, como no último debate Flow Podcast? Hipocritamente, o jornalismo corporativo se posiciona com a vestal da moralidade política e continua denunciando as “cenas deprimentes”. Marçal é a garantia de audiência e clickbaits de um produto midiático que se tornou engessado e monótono ao longo dos anos. Além de garantir dissonância cognitiva necessária para desmoralizar a política – que alimenta a extrema direita. É hora de defender Marçal, colocando-o na conta da grande mídia: ele é seu filho dileto. Mais do que isso: representa a “pós-meritocracia” dentro do ecossistema atual dos jogos e apostas online e do cassino dos investimentos financeiros para as “sardinhas” iludidas da classe média. Pós-meritocracia: caldo cultural que envolve o ideário da autoajuda, messianismo coach e a promessa do enriquecimento rápido através da gameficação generalizada nesse novo ecossistema da mídia convergente.
“Pablo Marçal é como o jogo do tigrinho. Promessas fáceis que podem até atrair quem está desiludido, mas que lascam com a maioria das pessoas”. Essa foi a réplica da candidata à prefeitura de São Paulo, Tabata Amaral (PSB), depois ouvir os, por assim dizer, “projetos” para a Educação do candidato dublê de coach, Pablo Marçal (PRTB), durante o debate promovido pelo Terra, SBR e Rádio Nova Brasil nessa sexta-feira, 20.
Assim como a cadeirada de Datena no candidato coach Marçal foi um evidente confronto da velha mídia (Datena e a mídia de massas televisiva) contra um personagem turbinado pela nova mídia de convergência, também a fala de Tabata Amaral revela um novo confronto de paradigmas.
Tabata é “cria” de Jorge Lemann (Tabata foi bolsista do programa de formação de novas lideranças da Fundação Estudar do bilionário brasileiro que a levou a Harvard, graduando-se em Ciência Política) é um exemplar da meritocracia neoliberal, enquanto Marçal é o avatar do paroxismo da ideologia meritocrática: a pós-meritocracia – um caldo cultural que envolve o ideário da autoajuda, messianismo coach e a promessa do enriquecimento rápido através da gameficaçao generalizada num ecossistema que vai dos jogos e cassinos online até a oferta de carteiras diversificadas de investimentos pela banca financeira – voltaremos a esse tema à frente.
Muito se fala sobre Pablo Marçal ser “disruptivo”, uma “ameaça à Democracia”, um “outsider” e assim por diante.
Para a grande mídia, evidentemente o que assistimos na TV ou lemos nos jornais são jornalistas corporativos que parecer tapar o nariz enquanto hipernormalizam o dublê de coach como apenas mais um candidato no “tabuleiro político”. Uma ambiguidade que demonstra que Pablo Marçal está cumprindo algum tipo de função conveniente para o sistema midiático.
Por que o convidam?
Pablo Marçal não deveria estar nos debates. Não obstante a Lei 9504/1997 desobrigar veículos de comunicação incluírem em debates candidatos de partidos que não tenham pelo menos cinco deputados eleitos, Marçal foi convidado pela grande mídia. Alcançando o estrelato imediato nos primeiros debates quando fez os jornalistas mediadores lembrarem aqueles professores de ensino médio que desesperadamente tentam conter a algazarra da “turma do fundão”.
“Colonistas”, analistas e especialistas convidados da grande mídia fazem o jogo da racionalização, assumindo a vestal moralizante: é como se a mídia não tivesse nada a ver com isso, abanando a cabeça em reprovação… “Ah! Esses políticos…”, num jogo de morde-assopra – demonizam Pablo Marçal enquanto fica eletrizada com suas performances que rendem audiência e clickbaits.
Paradoxalmente, aqui cabe uma defesa a Pablo Marçal. Ele não é um invasor que vem macular um saudável sistema democrático – só o fato de os debates erem colocados em horários proibitivos para a maioria dos eleitores, é uma evidência de algo não está funcionando direito na suposta democracia brasileira.
Marçal é o personagem conveniente dentro de um projeto longevo de transformação dos debates televisivos menos sobre “debate de propostas” e muito mais como eventos políticos e ideologicamente desidratados, além da criação sistemática de dissonâncias cognitivas para desmoralizar a política diante do distinto público.
A mídia hegemônica e hereditária (daquelas cinco famílias que detêm 50% das mídias – Marinho, Saad, Macedo, Sirotsky, Frias – que não têm o menor interesse em democracia) criou um movimento pendular para clivar o debate político: ou os debates se assemelham a discussões entre candidatos a síndico (eleições municipais) ou a CEO (eleições para governador e presidência); ou em shows de alopragem política. Cujo candidato coach Marçal é o paroxismo.
Desde o início, a partir do seminal debate entre Kennedy e Nixon em 1960, a necessidade telegênica foi a primeira constrição da linguagem televisiva sobre os debates políticos – a necessidade de parecer “fotogênico” no enquadramento da câmera, simular espontaneidade mesmo sabendo que a câmera o observa.
Engessamento e desidratação da política
No caso dos debates televisivos brasileiros, que começam dentro do lento processo de abertura política dentro da ditadura militar, o grande problema para a mídia hegemônica que ainda apoiava o regime era controlar os voos ideológicos e políticos dos debates. Não importava se a eleição era municipal ou estadual – sempre os grandes temas político-ideológicos invadiam os debates que supostamente deveriam apenas serem “propositivos”.
Na eleição para governador em 1982, os ataques de Franco Montoro contra Jânio Quadros, acusando-o de ter sido o responsável pelo fechamento político do país com sua renúncia à presidência em 1960. Ou as questões de luta de classes levantadas pelo líder sindical Lula, pela primeira vez, dentro dos estúdios da grande mídia.
Aos poucos os organizadores dos debates sentiram a urgência de engessar progressivamente as regras: primeiro, na base da cronometragem; depois, consequentemente, com o inchaço de participantes para fragmentar ainda mais os debates; e, finalmente, jogando o horário dos debates para horários proibitivos para a maioria dos brasileiros, apesar das TVs serem concessões públicas com a obrigação legal de massificar a informação.
Engessado, fragmentado e em horários proibitivos (restando à maioria dos espectadores procurar se informar sobre a posteriori em outras mídias ou nos resumos dos telejornais do horário nobre – logicamente, com o filtro ou o viés mais conveniente), criou-se então o mito da “bala de prata”.
Em debates engessados, somente denuncias ou dossiês revelados ao vivo poderiam quebrar a monotonia propositiva, colocando o oponente em saia justa. Afinal, de qualquer maneira teria pouco tempo para explicações nas réplicas e tréplicas. E a filtragem dos debates a posteriori faria o trabalho final.
Bala de prata, síndicos e CEOs
A mitologia da bala de prata invadiu o século XXI e continuou pairando como uma ameaça difusa em debates. Enquanto o jornalismo corporativo enaltecia o “debate propositivo” – sorteio por temas aos candidatos a “síndico” (mobilidade, educação, saúde etc.) e “CEO” (governança, sustentabilidade, dívida pública etc.).
Estratégia de desidratação, como se os temas de zeladoria urbana ou gestão pública não fossem motivados por grandes paradigmas político-ideológicos como neoliberalismo, marxismo, keynesianismo etc.
Ao mesmo tempo os debates tornam-se cada vez mais insípidos e monótonos, tal como uma reunião ordinária de condomínio. Criando a dissonância cognitiva necessária para esvaziar o interesse em política. Além de colocar os debates em horários proibitivos.
Pablo Marçal é a consequência lógica desse silogismo midiático: política é chata; o debate é político; logo… é um debate chato. Então… vamos aloprar! Principalmente porque agora os debates não são vistos a posteriori exclusivamente nos resumos dos telejornais das mídias de massas.
Agora estamos na mídia de convergência, e os “resumos” estão nos cortes compartilhados nas redes sociais.
Por isso a mídia tradicional precisa de gente como Pablo Marçal. Para tornar relevante um programa que virou debate entre candidatos a síndico ou CEO.
Por isso ele é convidado, mesmo que a lei eleitoral desobrigue os organizadores.
Na hora certa, a extrema direita descobriu o jogo da alopragem política: criar acontecimentos, polêmicas, crises, ameaças, para uma mídia sedenta por relevância. Afinal, os debates políticos têm que existir para criar a imagem de que a democracia brasileira é sólida e as instituições estão funcionando.
Pablo Marçal, assim como o “padre de festa junina” de 2022 e outros tantos aloprados que surgirão (sempre no espectro à direita), dão de forma perversa relevância aos debates televisivos engessados. Enquanto hipocritamente reclama de cenas “desagradáveis” como a cadeirada, festeja o todo hype dos bate-bocas.
Enquanto isso, a esquerda vai se desidratando, aceitando o ardil da mídia hegemônica em transformar a política em eleições condominiais ou corporativas.
Pós-meritocracia
A relação que Tabata Amaral faz entre Pablo Marçal e o jogo do tigrinho é muito mais do que uma analogia. É uma relação ontológica e existencial. O confronto da candidata do PSB é muito mais do que uma estratégia política, é um choque de paradigmas do passado com o do futuro: a meritocracia neoliberal contra o seu próprio paroxismo – a pós-meritocracia.
Tabata Amaral emergiu dentro de um projeto da guerra híbrida de formação de novas e jovens lideranças políticas, formatadas por princípios privatizantes, individualistas e meritocráticos.
Enquanto as ruas eram tomadas pela extrema direita que exortava os patriotas de verde e amarelo a enfrentar a “ditadura comunista”, as fundações educacionais corporativas como a de Jorge Lemann formavam lideranças dentro da perspectiva “menos Marx e mais Mises”.
Oito anos depois do auge, o impeachment de Dilma, a ideologia do empreendedorismo chega também ao seu auge: a gameficação.
De um lado, todo o ideário da autoajuda e do pensamento positivo evolui para o messianismo coach: a luta interna para libertar-se de si mesmo para tornar-se um vencedor. Jogos e cassinos online e a popularização da educação financeira voltadas ao investimento day trader completam esse ecossistema da gameficação – a ideia é “ter a visão” para “ser dar bem” e “se jogar no jogo”, como nos diz a letra de uma música em um comercial da Casa de Apostas.
Uma comparação entre esses paradigmas revela essa ontologia de Pablo Marçal:
Ambos os paradigmas são individualistas. Mas no primeiro, o indivíduo é integrado a regras: a capacitação, a certificação, o diploma etc., que correspondem a certa carga horária de aprendizado. Enquanto na pós-meritocracia o sujeito é disruptivo – ele deve ser tão “criativo” que anda no limite entre contravenção e legalidade. Passe por cima da ética ou moral. Depois peça desculpas ou se reposicione – apud Felipe Neto.
O mais curioso é que enquanto na meritocracia a competição é de todos contra todos, na pós-meritocracia o conflito é interno: na verdade você está numa guerra contra si mesmo, tentando liberar aquilo que está internamente bloqueado por culpa, inibições, baixa autoestima etc. Ambos os paradigmas culpabilizam o indivíduo pela derrota. Mas na pós-meritocracia é pior: você perdeu para você mesmo por ansiedade ou depressão.
Na meritocracia o futuro é sublimado: a energia do desejo por gratificação é sublimada no esforço dos estudos e capacitação para alcançar um objetivo futuro. No paradigma coach a gratificação deve ser rápida na medida em que o coach é “ontológico”: a força do pensamento deve moldar a realidade. Se você quer, você pode…
Enquanto a meritocracia é laica (ainda tributária da ciência e do conhecimento de capacitação laico), a pós-meritocracia tende ao messianismo e misticismo: conectar-se com o “si mesmo”, despertar energias positivas com a ajuda de gurus e líderes carismáticos, dependências de forças místicas ou “energias” para funcionar leva a uma espécie de pan-epifania que flerta com um grande arco ecumênico que vai do esoterismo new age ao neopentecostalismo.
E no final, enquanto a ideologia meritocrática promete uma gratificação final após todo o esforço educacional e laboral, a pós-meritocracia promete o prêmio pelo risco e audácia no ecossistema do jogo – dos jogos e apostas online às carteiras de investimento oferecidas para as “sardinhas” da classe média em um mar de tubarões do mercado financeiro.
PS.: Continua a hipocrisia do jornalismo corporativo nos debates nas eleições de SP: Pablo Marçal espera até os segundos finais do debate do Flow Podcast desta segunda-feira, 24, para provocar o mediador Carlos Tramontina e ser expulso. Para deflagrar bate-boca e socos entre assessores de Marçal e Ricardo Nunes. Mais uma vez, o jornalismo profissional se torna a vestal da moralidade política e acusa as “cenas deprimentes”. Então, por que insistem em convidar um candidato cuja lei eleitoral desobriga? Claro! Primeiro, para dar audiência e clickbaits de um produto que se tornou engessado e pouco atrativo; e, segundo, criar dissonância cognitiva: a insistência em desmoralizar a política diante do respeitável público nesse processo sem fim de guerra híbrida.
Publicado em Cinegnose.