Autoria Nora Hoppe, cineasta independente, roteirista, ensaísta e tradutora, nascida em New York, EUA.
Woody Allen disse uma vez: “Odeio a realidade, mas ela ainda é o melhor lugar para comer um bom bife.”
O que é “realidade”? No taoísmo, o Tao – que não pode ser totalmente entendido pela compreensão humana – é “eternamente sem nome” e deve ser distinguido das inúmeras coisas nomeadas as quais são consideradas suas “manifestações” – a realidade da vida antes de suas descrições. No budismo, pode-se dizer que a realidade é vista como uma forma de “projeção”, resultante da fruição de sementes cármicas. De acordo com a alegoria metafórica da caverna de Platão, os seres humanos só podem perceber a realidade como sombras da realidade que veem em uma parede.
O aspecto mais difícil da realidade que os seres humanos são compelidos a enfrentar é o seu fim último. Isso é “deprimente” para a maioria. Outro aspecto da realidade diz respeito à sobrevivência… que — na Natureza pelo menos e para pessoas vivendo sob genocídio, guerra ou pobreza — é uma batalha diária ao longo da vida. Tal batalha pode ser muito exaustiva de fato… e a maioria dos seres humanos (em circunstâncias privilegiadas) busca uma “saída fácil” comprando tréguas de todos esses esforços pela sobrevivência e do pensamento da morte — daí a busca incessante por riqueza, fuga e fantasias paliativas.
Muitas pessoas não gostam da realidade, ao que parece… especialmente hoje, especialmente em um mundo capitalista, especialmente no mundo ocidental atual… Muitas são até ENSINADAS a odiar a realidade… o que as torna manipuláveis e fracas para aqueles que buscam controlá-las por meio de uma “falsa consciência ” e ” hegemonia cultural ” moldadas por meio de NARRATIVAS – a palavra genérica “narrativa” assumiu um novo significado: a formulação de uma história sobre um tópico específico para moldar a opinião pública e alcançar uma imagem ou ponto de vista desejado.
Em um mundo capitalista, a publicidade é fundamental para apresentar e promover um produto ou serviço de forma que se produza o máximo de lucro; o aumento do consumo de produtos e serviços é gerado por meio do “branding” – que é a criação de uma identidade – externa… uma fachada .
A Guerra da Informação
Com o advento do neoliberalismo, essas mesmas práticas não são usadas apenas para produtos e serviços, mas também para a criação de narrativas políticas… E quem acaba “apropriando-se da narrativa” — um novo tropo da moda — é “o vencedor”… um vencedor que alcançou uma posição de onipotência.
Nos últimos anos, as “narrativas” se tornaram mais sofisticadas, tortuosas… e compulsoriamente espúrias, especialmente a serviço do Hegemon, para sustentar seu imperialismo político, econômico e especialmente cultural – por meio de Hollywood, da grande mídia, das mídias sociais, da IA, da indústria musical monopolizada, de fóruns de liberdade, financiamento de bolsas acadêmicas (para doutrinação), de festivais de tapete vermelho, juntamente com as ideologias pós-modernistas e wokistas recentes com a intenção de destruir os costumes tradicionais, a cultura clássica e os significados.
E dedicaram-se nesses desenvolvimentos por serem precisamente uma nação excepcionalista, “a escolhida” – cujas ações, mentalidade e valores precisam e devem ser imitados em todo o mundo – suas habilidades de propaganda e campanhas de Relações Públicas se destacaram… e logo deram origem a uma nova fórmula: “Soft Power” (este termo foi cunhado pelo cientista político americano Joseph Nye, da Universidade de Harvard, em meados da década de 1980, mas que se generalizou o uso pela primeira vez em 1990).
Soft Power… É algo para um novo mundo multipolar?
Certamente qualquer Estado, assim como uma organização, sempre buscará aprimorar suas habilidades diplomáticas e promover sua imagem para o mundo exterior da melhor maneira possível… E para esse objetivo, terá seus próprios departamentos de imprensa e relações públicas.
Mas alguns na Maioria Global – deslumbrados por essa marca categoricamente americana, a qual se mostrou extremamente bem-sucedida em todo o planeta – expressaram seu desejo de que seus Estados criem seu próprio “soft power”, crendo tratar-se de um conceito neutro e geral – algo semelhante a relações públicas e campanhas promocionais que buscam promover uma imagem positiva de um país… Mas é isso?
Primeiro de tudo, por que emular algo recentemente concebido em um Império em decadência? Não é uma fórmula nascida do excepcionalismo e do neoliberalismo americanos?
Embora o conceito de soft power tenha conseguido cativar a Rússia nos primeiros anos após o colapso da União Soviética (talvez tenha sido simplesmente associado erroneamente ao apelo cultural e à imagem positiva de um país), ele logo perdeu seu fascínio. Em 2019, o professor Sergei A. Karaganov (professor emérito, supervisor acadêmico da Faculdade de Economia Mundial e Relações Internacionais, cientista político e consultor político sênior) foi citado como tendo escrito que o “conceito de soft power deve ser reconhecido como uma ilusão intelectual, pois não é mais ‘adequado’ à nova realidade das relações internacionais”.
E em um relatório de 2023 intitulado Política da Rússia em relação à maioria mundial, o professor Karaganov, o diretor Kramarenko e o professor Trenin escreveram: “A Rússia deve parar de usar o termo ‘soft power’, que foi emprestado do discurso político ocidental, reflete a abordagem e os interesses dos Estados Unidos em primeiro lugar.”
E então… o que é realmente – essa coisa de ‘soft power’?
Joseph Nye popularizou seu termo cunhado em seu livro de 1990, Bound to Lead: The Changing Nature of American Power, descrevendo-o assim: “quando um país faz com que outros países queiram o mesmo que ele quer, pode-se chamá-lo de poder cooptativo ou soft power, em contraste com o hard power ou poder de comando de ordenar aos outros que façam o que se quer“ … [Note Bem, que o dicionário Cambridge define “cooptar” como, entre outras coisas, “incluir alguém em algo, geralmente contra sua vontade”; “reivindicar algo como seu quando na verdade foi criado por outros].
Nye desenvolveu ainda mais o conceito em seu livro de 2004, “Soft Power: The Means to Success in World Politics”, no qual escreveu: “A sedução é sempre mais eficaz que a coerção, e muitos valores como democracia, direitos humanos e oportunidades individuais são profundamente sedutores”.
Em seu texto intitulado The Benefits of Soft Power, Nye define “poder” como: “a habilidade de influenciar o comportamento dos outros para obter os resultados que se deseja […]. Este soft power – fazer com que os outros queiram os resultados que você deseja – coopta as pessoas em vez de coagi-las. O soft power repousa na capacidade de moldar as preferências dos outros. […]. Os recursos do Soft Power são os ativos que produzem atração […] e a atração frequentemente leva à aquiescência[…] O mundo da política tradicional é tipicamente sobre quem vence militarmente ou economicamente. A política em uma era da informação pode, em última análise, ser sobre qual história vence .” [ênfase minha]
Portanto, tudo depende, em última análise, da Narrativa…
E a narrativa é propriedade do…
… o “Império das Mentiras”.
Os Estados Unidos sempre se apresentaram – desde seus primórdios genocidas – como uma entidade pura e virtuosa, concedendo liberdade e democracia a todos que entram em seus salões sagrados. É o campeão mundial de narrativas, as quais construiu e usou para celebrar a si mesmo ao longo dos séculos. Ao longo dos anos, essas narrativas vendem: “O sonho americano”, “democracia”, “liberdade”, “direitos humanos”, “valores ocidentais”, “uma ordem baseada em regras”, “filantropia”, “oportunidades individuais”, “da miséria à riqueza”, “estrelato instantâneo”…
Não é surpresa que um conceito como “soft power” tenha nascido dessa mentalidade e especificamente do sistema econômico do capitalismo financeiro americano. Explorando sua fachada virtuosa, a marca americana “soft power” se tornou a glória suprema da política externa americana – uma “manobra de marketing astuta” para seduzir e enganar suas presas para… aquiescência. Na verdade, é a arma mais insidiosa e malévola do Hegemon, pois infectou mentes em todos os lugares.
Essas narrativas produziram: neocolonialismo, o politicamente correto, wokismo, cultura do cancelamento, sinalização de virtude, ONGs duvidosas, revoluções coloridas, mudanças de regimes, operações psicológicas, desestabilizações econômicas, a aniquilação de gêneros, costumes, sociedade etc. Em sua apresentação untuosa, hipócrita e paternalista, essas narrativas são, em essência, desdenhosas não apenas de outros seres humanos, mas da realidade. O soft power rouba a verdade de sua presa alvo, os significados, a ética e tudo o que elas consideram sagrado.
Hoje, a descarada e a hediondez das tentativas do Império e seus vassalos de nos enganar sobre seu envolvimento direto no Genocídio em Gaza e em sua guerra na Ucrânia atingiram o seu ápice. Adicione a isso as atuais e cada vez mais agressivas campanhas de perseguição e intimidação contra jornalistas reais e plataformas de notícias honestas que relatam a verdade e expõem as narrativas mentirosas do império…
A constante produção dessas narrativas para a “máquina de soft power” do Hegemon mostra todos os sintomas do transtorno mental conhecido como mitomania – “um comportamento crônico caracterizado pela tendência habitual ou compulsiva de mentir”. Assim como um mentiroso patológico – após um longo padrão de contar mentiras para enganar os outros, o indivíduo logo começa a acreditar em suas próprias mentiras… e em pouco tempo chafurda em um mundo irreal, recorrendo a mentiras cada vez mais absurdas, alegações ultrajantes e comportamento irracional, o que, em última análise, leva à insanidade. E não é isso que estamos observando hoje no Hegemon desesperado?
A fachada das narrativas imperiais está ruindo e a Maioria Global atentou-se
Nações soberanas estão redescobrindo seus valores, tradições e raízes culturais seculares e aquelas de outras nações – sem a necessidade de mercantilizá-las. Até mesmo muitos cidadãos do Ocidente estão começando a ver através das mentiras e enganos e anseiam por algo mais – sem saber ainda o quê.
Depois de toda a espuma e bolhas de sabão lançadas pelo neoliberalismo, muitos estão simplesmente ansiando por autenticidade, sinceridade, confiança e dignidade.
A realidade não é apenas um lugar para comer um bom bife e estar ciente da própria finitude, mas – quando alguém finalmente consegue se desvencilhar do seu celular-placenta – é também um lugar no qual alguém pode se tornar mais consciente de estar vivo… em meio às inúmeras coisas maravilhosas da criação.
Se quisermos criar um novo mundo, isso só pode ser feito reconhecendo a realidade e buscando a verdade… o que é, em última análise, um esforço espiritual.
Publicado em Internacionalist 360º.