Autoria Pepe Escobar, jornalista veterano independente brasileiro, autor e analista especialista em geopolítica. Colaborou com dezenas de veículos de imprensa nos EUA, Europa e Ásia.
A cabala OTAN-Israelense cheerleader da queda de Damasco vai ganhar mais do que esperava. Lutas pelo poder, conflitos internos entre milícias extremistas e a sociedade civil, cada um apoiado por diferentes atores regionais e estrangeiros por seu pedaço do bolo.
A manchete curta que define o fim abrupto e rápido da Síria como a conhecemos seria: Eretz Israel encontra o neo-otomanismo. O subtítulo? Uma vitória para o Ocidente e um golpe letal contra o Eixo da Resistência, mas, para citar a cultura pop americana ainda presente, talvez as corujas não sejam o que parecem.
Comecemos pela rendição do ex-presidente sírio Bashar al-Assad. Diplomatas do Catar, off the record, sustentam que Assad tentou negociar uma transferência de poder com a oposição armada que havia lançado uma grande ofensiva militar nos dias anteriores, começando com Aleppo, então rapidamente se dirigiu para o sul em direção a Hama, Homs, mirando Damasco. Foi isso que foi discutido em detalhes entre Rússia, Irã e Turquia à portas fechadas em Doha no último fim de semana, durante o último suspiro do moribundo “processo de Astana” para desmilitarizar a Síria.
A negociação de transferência de poder falhou. Por isso, Assad recebeu asilo do presidente russo Vladimir Putin em Moscou. Isso explica por que tanto o Irã quanto a Rússia mudaram instantaneamente a terminologia enquanto ainda estavam em Doha, começaram a se referir à “oposição legítima” em uma tentativa de distinguir os não militantes reformistas dos extremistas armados que cortavam um pedaço do Estado.
O Ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov – sua linguagem corporal revelou tudo sobre sua raiva – disse literalmente: “Assad deve negociar com a oposição legítima, que está na lista da ONU”.
Muito importante: Lavrov não se referia à Hayat Tahrir al-Sham (HTS), à máfia salafista-jihadista ou à máfia Jihadistas-de-aluguel financiadas pela Organização Nacional de Inteligência Turca (MIT), com armas financiadas pelo Catar e totalmente apoiadas pela OTAN e Tel Aviv.
O que aconteceu depois do funeral em Doha foi bastante obscuro, sugerindo um golpe controlado pela inteligência ocidental remotamente, que se desenvolveu tão rápido quanto um raio, com relatos de traições domésticas.
A ideia original de Astana era manter Damasco segura e fazer com que Ancara administrasse o HTS. No entanto, Assad já havia cometido um sério erro estratégico, acreditando em promessas elevadas da OTAN, transmitidas por meio de seus novos amigos líderes árabes nos Emirados Árabes Unidos e na Arábia Saudita.
Para sua própria surpresa, de acordo com autoridades sírias e regionais, Assad finalmente percebeu o quão frágil era sua própria posição, tendo recusado assistência militar de seus fiéis aliados regionais, Irã e Hezbollah, acreditando que seus novos aliados árabes poderiam mantê-lo seguro.
O Exército Árabe Sírio (SAA) estava em frangalhos após 13 anos de guerra e das sanções implacáveis dos EUA. A logística era vítima de uma deplorável corrupção. A podridão era sistêmica, mas o mais importante, enquanto muitos estavam preparados para lutar contra os grupos terroristas apoiados por estrangeiros mais uma vez, fontes internas dizem que Assad nunca mobilizou totalmente seu exército para contra-ataque.
Teerã e Moscou tentaram de tudo – até o último minuto. Na verdade, Assad já estava em apuros desde sua visita a Moscou em 29 de novembro,a qual não colheu resultados tangíveis. O establishment de Damasco considerou a insistência da Rússia de que Assad deveria abandonar suas linhas vermelhas para a negociação de um acordo político como um sinal que apontasse para o fim.
Turquia: ‘não temos nada a ver com isso’
Além de não fazer nada para evitar a crescente atrofia e colapso do SAA, Assad não fez nada para controlar Israel, a qual bombardeia a Síria sem parar há anos. Até o último momento, Teerã estava disposta a ajudar: duas brigadas estavam prontas para entrar na Síria, mas levaria pelo menos duas semanas para serem mobilizadas.
A Fars News Agency explicou o mecanismo em detalhes – da inexorável falta de motivação da liderança síria para lutar contra as brigadas terroristas até Assad ignorar os sérios avisos do Líder Supremo Iraniano Ali Khamenei desde junho, até dois meses atrás, com outras autoridades iranianas alertando que o HTS e seus apoiadores estrangeiros estavam preparando uma blitzkrieg. De acordo com os iranianos:
“Depois que Aleppo caiu, ficou claro que Assad não tinha intenções reais de permanecer no poder, então começamos a nos envolver em negociações diplomáticas com a oposição e organizamos a saída segura de nossas tropas da Síria. Se o SAA não lutar, nós também não arriscaremos as vidas de nossos soldados. A Rússia e os Emirados Árabes Unidos conseguiram convencê-lo a renunciar, então não havia nada que pudéssemos fazer.”
Não há confirmação russa de que eles convenceram Assad a renunciar: é preciso apenas interpretar aquela reunião fracassada em Moscou em 29 de novembro. No entanto, significativamente, há confirmações, antes disso, sobre a Turquia saber tudo sobre a ofensiva HTS há seis meses.
A versão de Ancara é previsivelmente obscura: o HTS contou a eles sobre isso e pediu que não interviessem. Além disso, o Ministério das Relações Exteriores turco divulgou que o presidente-califa Recep Tayyip Erdogan tentou avisar Assad (nenhuma palavra de Damasco sobre isso). Ancara, oficialmente, por meio do Ministro das Relações Exteriores Hakan Fidan, nega firmemente orquestrar ou aprovar a ofensiva Jihadista-de aluguel. Eles ainda poderão se arrepender disso, junto com todos os outros, de Washington a Tel Aviv, que saltaram na jogada para levar os créditos pela queda de Damasco.
Somente a máquina de propaganda da OTAN acredita nessa versão – já que o HTS tem sido completamente apoiado há anos, não apenas pela Turquia, mas também, secretamente, por Israel, que foi denunciado por pagar salários aos extremistas durante a guerra na Síria e ajudou com tratamento médico aos combatentes da Al-Qaeda feridos em batalha.
Tudo isso leva ao cenário predominante de uma demolição cuidadosamente calculada e controlada pela CIA/MI6/Mossad, com um fluxo ininterrupto de armas, treinamento ucraniano de takfiris no uso de drones kamikazes FPV e malas cheias de dinheiro subornando altos oficiais sírios.
New Great Game reloading…
O colapso da Síria pode ser um caso clássico de “alargamento da Rússia” – e também do Irã, no que diz respeito à crucial ponte terrestre que os ligam aos seus aliados no Mediterrâneo (os movimentos de resistência libanês e palestino). Sem mencionar o envio de uma mensagem à China, que, apesar de toda sua retórica elevada de “comunidade de um futuro compartilhado”, não fez absolutamente nada para ajudar na reconstrução da Síria.
No nível geoenergético, agora não há mais obstáculos para a resolução de uma saga épica do Oleogasodutoistão – e uma das principais razões para a guerra na Síria, como analisei há nove anos: construir o gasoduto Qatar-Turquia através do território sírio para fornecer à Europa uma alternativa ao gás russo. Após Assad rejeitar esse projeto, Doha ajudou a financiar a guerra na Síria para depô-lo.
Não há evidências de que os principais Estados do Golfo Pérsico, como Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, aceitarão alegremente o estrelato geoeconômico do Catar se o gasoduto for construído. Para começar, ele precisa passar pelo território saudita, e Riad pode não estar mais aberta a isso.
Essa questão candente se conecta a uma série de outras questões, incluindo, com a praticamente extinção da porta de entrada síria: como o Hezbollah receberá suprimentos de armas no futuro e como o mundo árabe reagirá à Turquia tentando se tornar totalmente neo-otomana?
Depois, há o caso espinhoso do Estado parceiro do BRICS, a Turquia, em choque direto com os principais membros do BRICS, Rússia, China e Irã. A nova virada de Ancara pode até acabar fazendo com que ela seja rejeitada pelo BRICS e não receba um status comercial favorável da China.
Embora certamente se possa argumentar que perder a Síria pode ser devastador para a Rússia e a Maioria Global, segure os cavalos – por agora. No caso de perder o porto de Tartus, que a URSS-Rússia administra desde 1971, junto com a base aérea de Hmeimim – e, portanto, ser expulsa do Mediterrâneo Oriental – Moscou teria opções de substituição, com diferentes graus de viabilidade.
Temos a Argélia (parceira do BRICS), o Egito (membro do BRICS) e a Líbia. Até o Golfo Pérsico: isso, incidentalmente, pode se tornar parte da parceria estratégica abrangente Rússia-Irã, a ser assinada oficialmente em 25 de janeiro em Moscou por Putin e seu colega iraniano, o presidente Masoud Pezeshkian.
É extremamente ingênuo supor que Moscou foi pega de surpresa pela encenação de um suposto Kursk 2.0. Como se todos os ativos de inteligência russos — bases, satélites, inteligência terrestre — não tivessem identificado um bando de salafistas-jihadistas por meses reunindo um exército completo de dezenas de milhares com divisão de tanques na Grande Idlib.
Então é bem plausível que o que está sendo jogado seja a Rússia clássica, combinada com a astúcia persa. Não demorou muito para que Teerã e Moscou fizessem as contas sobre o que perderiam — especialmente em termos de recursos humanos — ao cair na armadilha de apoiar um Assad já enfraquecido em mais uma sangrenta e prolongada guerra terrestre. Ainda assim, Teerã ofereceu apoio militar, e Moscou, apoio aéreo e cenários de negociação até o fim.
Agora, toda a tragédia síria – incluindo um possível Califado de all-sham (neologismo em inglês da união de all (total) e sham (falso) “Califado totalmente-falso”) liderado pelo jihadista reformado e defensor das minorias Abu Mohammad al-Julani – recai sobre a total responsabilidade administrativa da combinação entre OTAN/Tel Aviv/Ancara.
Eles simplesmente não estão preparados para navegar na ultracomplexa estrutura tribal síria, clânica e enraizada corrupção – sem mencionar o magma com 37 grupos terroristas mantidos juntos, até agora, apenas pela pequena cola da expulsão de Assad. Este vulcão certamente explodirá em seus rostos, potencialmente na forma de horrendas batalhas internas que podem durar pelo menos alguns anos.
O nordeste e o leste da Síria já estão, instantaneamente, atolados na anarquia total, com múltiplas tribos locais empenhadas em manter seus esquemas mafiosos a todo custo, recusando-se a ser controladas por uma composição EUA-Curdo Rojava que é em grande parte comunista e secular. Algumas dessas tribos já estão se aconchegando com os salafistas-jihadistas apoiados pelos turcos. Outras tribos árabes uniram forças com Damasco este ano contra os extremistas e os secessionistas curdos.
O oeste da Síria também pode ser território de anarquia, como em Idlib: rivalidade sangrenta entre redes terroristas e de bandidos, entre clãs, tribos, grupos étnicos e grupos religiosos arregimentados por Assad, o panorama é ainda mais complexo do que na Líbia, sob o comando do ex-presidente Muammar al-Gaddafi.
Quanto às linhas de suprimento dos Cortadores de Cabeças, elas serão inevitavelmente esticadas – e então será fácil cortá-las, não apenas pelo Irã, por exemplo, mas também pela ala da OTAN via Turquia/Israel quando eles se voltarem contra o Califado, como invariavelmente podem fazer se os abusos deste último se tornarem muito aparentes na mídia ocidental.
Ninguém é capaz de prever o que acontecerá com a carcaça síria da dinastia Assad. Milhões de refugiados podem retornar, especialmente da Turquia, cujo Washington tenta impedir há anos para proteger seu projeto de “curdificação” no norte – mas, ao mesmo tempo, milhões fugirão aterrorizados pela perspectiva de um novo Califado e uma renovada guerra civil.
Existe um possível raio de luz em meio a tanta escuridão? O líder do governo de transição será Mohammad al-Bashir, que foi, até recentemente, o primeiro-ministro do chamado Governo de Salvação Sírio (SSG) na Idlib governada pelo HTS. Engenheiro elétrico por formação, Bashir acrescentou mais um diploma à sua educação em 2021: Sharia e Direito.
Perder a Síria não significa perder a Palestina
A Maioria Global pode estar lamentando o que, na superfície, parece um golpe quase letal contra o Eixo da Resistência. No entanto, não há como a Rússia, o Irã, o Iraque — e até mesmo a China estrondosamente silenciosa — deixarem um exército salafista-jihadista por procuração da OTAN-Israel-Turquia prevalecer. Ao contrário do Ocidente coletivo, eles são mais inteligentes, mais resistentes, infinitamente mais pacientes e consideram os contornos do Grande Quadro à frente. É muito cedo; mais cedo ou mais tarde, eles farão acontecer para impedir que o jihadismo apoiado pelo Ocidente se espalhe para Pequim, Teerã e Moscou.
A agência de inteligência estrangeira russa Sluzhba Vneshney Razvedki (SVR) agora tem que monitorar 24 horas por dia, 7 dias por semana, qual será o próximo destino da grande brigada salafista-jihadista cross-Heartland na Síria, esmagadoramente uzbeques, uigures, tadjiques e uma pitada de chechenos. Não há dúvida de que eles serão usados para “extend” (terminologia do Think Tankland dos EUA) não apenas na Ásia Central, mas na Federação Russa.
Enquanto isso, Israel estará sobrecarregado no Golã. Os americanos se sentirão temporariamente seguros e protegidos em torno dos campos de petróleo dos quais continuarão roubando da Síria. Essas são duas latitudes ideais para o início do que seria a primeira retaliação pactuada no BRICS contra aqueles que estão desencadeando a Primeira Guerra do BRICS.
Então, há a tragédia final: Palestina. Uma reviravolta enorme aconteceu bem dentro da venerável mesquita Omíada em Damasco. O Exército de Decapitação da OTAN-Israel-Turco agora está prometendo aos palestinos que estão vindo para libertar Gaza e Jerusalém.
No entanto, até o último domingo, tudo era “Nós amamos Israel”. O mestre de cerimônias dessa operação de relações públicas – projetada para enganar o mundo muçulmano e a maioria global – não é outro senão o próprio califa de al-Sham, Julani.
Do jeito que está, o novo regime em Damasco será, para todos os propósitos práticos, apoiado por aqueles que apoiam e arquitetam Eretz Israel e o genocídio da Palestina. Já está exposto, vindo dos próprios oficiais do gabinete israelense: Tel Aviv idealmente adoraria expulsar a população de Gaza e da Cisjordânia para a Síria, embora a Jordânia seja seu destino preferido.
Esta é a batalha para focar de agora em diante. O falecido secretário-geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah, foi inflexível quando insistiu no significado mais profundo de perder a Síria: “A Palestina estaria perdida”. Mais do que nunca, cabe à Resistência Global não permitir isso.
Publicado em The Craddle