Autoria Wilson Ferreira, jornalista, editor do Cinegnose, professor, escritor e pesquisador em Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. É Mestre em Comunicação Contemporânea (Análises em Imagem e Som), doutor em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP.
Poucos estão percebendo uma sutil ironia que envolve o crescimento desse novo ecossistema digital composto, de um lado, pelas apostas e cassinos online; e do outro, a atração da classe média pela diversificação das carteiras de investimentos no alcance dos dedos na tela de um smartphone. “Colonistas” da grande mídia estão se sentindo traídos pelo seu maior aliado e patrocinador, a Faria Lima, a “elite irresponsável” que se apaixonou pelo “forasteiro” Pablo Marçal. Mais do que um hype, Marçal é um sintoma do zeitgeist desse novo ecossistema digital: a pós-meritocracia e a gameficação. Que coloca em xeque a ideologia do mérito-empreendedorismo que o jornalismo corporativo abraçou como a terra prometida pós golpe de 2016. Não chegamos a nenhuma terra prometida, enquanto a Faria Lima descobriu que está no mesmo negócio de apostas e cassinos. Pós-meritocracia: o povo não quer mais empreender, quer jogar!
Em uma cena do filme francês Red Rooms (2023), a enigmática Kelly-Anne vai pagar a conta em um restaurante. Hábil jogadora de poker online, ela saca seu Iphone, entra em um site de jogos e apostas e inicia um rápido jogo de poker em uma das mesas virtuais. E consegue amealhar as bitcoins necessárias para pagar a conta. E vai embora.
Red Rooms não é um sci-fi e muito menos um filme distópico. Apenas reflete o zeitgeist do novo ecossistema digital cuja ideia de gameficação do cotidiano é cada vez mais pervasiva – das apostas e cassinos online à diversificação das carteiras de investimento que traz a ilusão de enriquecer achando-se que virou um day trader.
Se no passado era tudo ao alcance de um clique no mouse, hoje fica mais rápido e sensível ao leve toque na tela do smartphone – tudo sob o comando das seduções cognitivas da economia da atenção e arquitetura da informação para induzir ao vício, compulsão e impulsividade.
Gameficação deixou de ser mero entretenimento ou simples “teste dos seus conhecimentos esportivos” (como de forma pueril a legislação das bets quer limitar as apostas online): virou forma de renda variável no cotidiano e horizonte de expectativa de enriquecimento rápido, seduzido por celebridades e influenciadores que ostentam sua fama e riqueza.
É emblemático o vídeo promocional da plataforma de aposta e jogos online “Casa de Apostas”, ao som de um funk ostentação: “peguei a visão/a grana tá na mão/tô me dando bem/ vem você também/deixe seu bolso forte/abrace sua sorte”.
Nesses versos curtos de exortação está uma pequena síntese daquilo que esse humilde blogueiro vem conceituando como Pós-meritocracia: embora igualmente individualista como a meritocracia neoliberal, a Pós-meritocracia redefine o papel do indivíduo no sistema meritocrático a partir das noções do disruptivo (tô me dando bem), imediatismo (grana tá na mão), messianismo (abrace sua sorte), misticismo (peguei a visão) e prêmio (deixe seu bolso forte).
Esse conjunto de noções coloca em xeque tanto a ideologia meritocrática quanto o discurso do empreendedorismo, panaceia que a grande mídia vem martelando desde o pós-impeachment de 2016 com o governo Temer. A reciclagem dos desempregados em empreendedores que supostamente estariam livres da tutela do Estado, sindicatos, legislações ou direitos trabalhistas. A força de trabalho finalmente libertada para exercer sua potência criativa – também a reciclagem da ideia clássica do laissez faire, agora transposta para a patuleia sem emprego formal.
Por isso é sintomática a reação de alguns “colonistas” da grande mídia, como, por exemplo, a matéria do secretário de redação da Folha, o sociólogo Vinícius Mota, intitulada “A Era da Impaciência e o Retorno do Misticismo”. “Drogas sintéticas, apostas online, pornografia, guloseimas ultraprocessadas, influenciadores hedonistas, memes, mensagens, fofocas. A oferta de elementos que perturbam a atenção e dificultam o autocontrole nunca foi tão copiosa”, escreve o “colonista”.
O articulista exorta a “concentrar a atenção naquilo que é importante” e a necessidade da “paciência” diante de uma cultura do imediatismo – clique aqui.
O artigo de Vinicius Mota é um sintoma de um pressentimento que é bem real: a ideologia do mérito-empreendedorismo está perdendo o lugar para esse novo espírito do tempo da pós-meritocracia – a grande mídia começa a sentir que, ironicamente, o anti-petismo que tanto incentivou ao ponto de abrir a caixa de pandora da extrema direita, está colocando abaixo a ideologia que deveria substituir o neodesenvolvimentismo dos governos lulo-petistas: a promessa do paraíso do mérito-empreendedorismo.
Parece que essa nova geração Z (aquela dos nativos digitais) percebeu que a promessa do empreendedorismo não virou, isto é, vem naufragando na tempestade da precarização e do crescimento das falências (segundo o Valor Econômico, apesar do potencial empreendedor, em 2023 a cada minuto quatro empresas fecharam, num crescimento de 33% em relação a 2022) – simplesmente está caindo a ficha que a terra prometida pós-impeachment não chega nunca.
Jogo do Tigrinho
Nesse sentido foi críptica a frase da candidata Tabata Amaral (PSB), no debate promovido pelo Terra, SBR e Rádio Nova Brasil, sobre o candidato Pablo Marçal (PRTB): “Pablo Marçal é como o jogo do tigrinho. Promessas fáceis que podem até atrair quem está desiludido, mas que lascam com a maioria das pessoas”.
Pablo Marçal é muito mais do que o hype do candidato outsider que alopra o cenário político – alopragem que encanta a grande mídia pela capacidade de Marçal criar matéria-prima para conteúdo sobre escândalos.
Mesmo que não chegue a lugar nenhum nessa eleição, Marçal já surge como um sintoma desse espírito de época da pós-meritocracia: ele promete prosperidade pela mudança do mindset do paulistano (“pegar a visão”, como nos informa o funk ostentação do vídeo da Casa de Apostas).
Sabendo-se que a “prosperidade” de Marçal não tem mais a ver com a operosidade, o trabalho, o esforço, os anos despendidos por um empreendedor à espera que o seu negócio dê certo. Marçal promete a mentalidade da prosperidade coach – aquela capaz de, em poucos minutos, reprogramar a mente e, por exemplo, em um dia aprender a nadar e no outro já estar dando aula.
Por isso começam a surgir “colonistas” da grande mídia sentindo-se como que traídos por aqueles que ajudaram a apoiar o movimento das camisetas verde-amarelas que tomaram as ruas. Veem agora a Faria Lima flertando com o candidato Pablo Marçal, seduzida pelo discurso coach pós-meritocrático.
As jornalistas Miriam Leitão e Vera Magalhães são, até aqui, as “colonistas” mais indignadas com essa traição.
“Chega de brincar, elite paulistana”, conclama Vera Magalhães. “É espantoso que Marçal ainda tenha algo como 20% das intenções de voto depois de meses de seu show de horrores diário”, escreve. E aponta os responsáveis, a “elite paulistana”, quer dizer, os operadores financeiros: “O povo do colete de náilon de gominhos com camisa social e sapatênis — combinação que já denota o misto de autoconfiança excessiva com falta de noção — se apaixonou pelo forasteiro que caiu de teleférico no principal centro econômico do Brasil, com o único intuito de se autopromover, de olho nos próprios (e obscuros) negócios e nas eleições presidenciais” – clique aqui.
Enquanto Miriam Leitão crava: “Direita perdida, elite inculta: A direita virou um satélite de extremistas, a elite não encontrou o rumo da atualidade, isso coloca em risco o projeto de país”. Claro que o risco de “projeto de país” de Leitão é por a perder o projeto do mérito-empreendedorismo promovido diariamente com entusiasmo pelo jornalismo corporativo.
Colocado em risco pelos traidores da Faria Lima: “A Faria Lima, que administra o dinheiro poupado da classe média e dos ricos, se inclina por um candidato que não tem uma única ideia de como administrar a maior cidade do país”.
Faria Lima também é uma casa de apostas
A questão é que a banca financeira atraiu a classe média para um verdadeiro cassino em que se transformou a promessa de enriquecimento com a diversificação das carteiras de investimento: no alcance de um dedo na tela do smartphone, sentir-se como um day trader, um apostador no capitalismo de cassino – bem diferente dos tubarões da banca financeira, os ricos, que não fazem apostas como as sardinhas de classe média. Investem a partir de informações seguras e privilegiadas.
Junto com as apostas e os cassinos online, casas como uma XP Investimentos ou Rico (!), com suas sedutoras plataformas digitais, transformam o investimento em algo análogo a aposta. É todo um novo ecossistema digital dominado pelo paradigma da gameficação – o jogo como categoria de pensamento através da qual tudo é redefinido, como sintetiza o quadro comparativo abaixo entre Meritocracia e Pós-meritocracia:
Enquanto na Meritocracia o indivíduo é integrado a regras pré-estabelecidas (cursos de capacitação técnica, a certificação, o diploma de graduação dentro de uma carga horária de aprendizado para adquirir uma proficiência), na Pós-meritocracia o sujeito deve ser disruptivo – ele deve ser tão “criativo” que acaba no limite entre contravenção e legalidade. Ele deve sempre “pensar fora da caixinha”, ser disruptivo ao ponto em que as fronteira ética ou morais se apagam.
Se na Meritocracia a competição é de todos contra todos, na Pós-meritocracia a competição é internalizada: na verdade você está numa guerra contra si mesmo, tentando destravar aquilo que está psiquicamente bloqueado por fatores pessoais que a filosofia coach (o paroxismo da autoajuda) promete deletar: culpa, inibições, baixa autoestima etc. Ambos os paradigmas culpabilizam o indivíduo pela derrota. Mas na pós-meritocracia é pior: você perdeu para você mesmo por ansiedade ou depressão.
Na Meritocracia o futuro é sublimado: a energia do desejo por gratificação é sublimada no esforço dispendido nos estudos e capacitação. Isto é, a energia que busca satisfação imediata é adiada para a gratificação futura. No paradigma coach da Pós-meritocracia a gratificação prometida é rápida através de um paradigma ontológico: a força do pensamento deve moldar a realidade. Se você quer, você consegue!
Enquanto o sistema meritocrático requer uma aprendizagem tributária da ciência e do conhecimento que envolve a capacitação, a pós-meritocracia tende ao messianismo e misticismo: conectar-se com o “si mesmo”, despertar energias positivas com a ajuda de gurus e líderes carismáticos, procurar forças místicas ou “energias”.
Criando um grande arco ecumênico que vai do esoterismo new age combinado com pseudo neurociência ao misticismo neopentecostal. Da força do pensamento positivo, passando pelo ideário da autoajuda, chegando na fé mística, seja por igrejas ou seitas.
E no final, enquanto a ideologia meritocrática promete uma gratificação final após todo esforço educacional e laboral, a Pós-meritocracia promete o prêmio pelo risco e audácia no jogo – a gratificação do lucro empreendedor é substituída pela sorte, o aleatório.
Concluindo, testemunhamos uma segunda invertida irônica que a grande mídia toma.
A primeira, na época do jornalismo de guerra que derrubou a presidenta Dilma em 2016: tirou a tampa da garrafa e deixou o gênio do Brasil profundo (a extrema direita aliada ao ódio e ressentimento profundos açodados pela cismogênese de guerra híbrida) tomasse as ruas e, finalmente, o poder.
Acreditava que bastaria apenas botar o gênio de volta e tampar a garrafa. Mas o gênio não quis voltar, condenando o jornalismo corporativo a ter de conter danos e hipernormalizar a catástrofe.
E a segunda: ver atônita a aliada banca financeira traindo a ideologia que a grande mídia tão fortemente abraçou de forma mais realista do que o próprio rei: a ideologia do mérito-empreendedorismo.
Publicado em Cinegnose.